Aristóteles (Segundos Analíticos) – Da aquisição dos princípios

2. Assentamos anteriormente em que não é possível saber nada pela demonstração, a não ser sob a condição de conhecermos os primeiros princípios imediatos.

3. Mas este conhecimento dos princípios imediatos, pode perguntar-se, é ou não da mesma natureza dos conhecimentos das conclusões? Há ou não há ciência de uns e das outras?1 Há ciência para estas2 e algum modo diverso de conhecimento para aqueles? As faculdades que servem para conhecer os princípios são adquiridas por nós sem estar em nós primitivamente? Ou então, estando em nós primitivamente, permanecem de início ocultas?

4. Crer que as possuamos desta maneira é um absurdo; porque se segue que, tendo conhecimentos mais exatos que a própria demonstração, apesar disso os ignoramos; e, por outro lado, se os adquirimos sem tê-los anteriormente, como poderíamos aprendê-los sem um conhecimento anterior? Tudo isto é, na verdade, impossível, como já o fizemos ver na demonstração. Logo, é evidente, não é possível que tenhamos primitivamente estes princípios, sem que se formem em nós, sem que tenhamos qualquer conhecimento deles, nem faculdade alguma para os adquirir.

5. E, assim, é de necessidade que tenhamos algum poder de adquiri-los, sem que, por isso, essa faculdade, possuída por nós, seja superior em exatidão aos princípios mesmos.

Ora isto é o que parece encontrar-se em todos os animais, visto todos terem esse poder inato de julgar que se chama sensibilidade. Sendo a sensibilidade uma faculdade inata em todos os animais, é acompanhada em alguns da persistência da sensação e em outros não. Naqueles em que se não verifica essa persistência, o conhecimento, quer de maneira geral, quer, pelo menos, nos casos em que a percepção se apaga logo, não vai além da própria sensação. Os outros, pelo contrário, conservam depois da sensação alguma coisa na alma; e há muitos animais constituídos deste modo. Mas há, todavia, entre eles a diferença de que em uns se forma a razão por virtude desta persistência das sensações e em outros a razão não se forma. Assim, pois, a memória, como dizemos, vem da sensação, e da memória de uma mesma coisa, muitas vezes repetida, vem a experiência; porque as lembranças podem ser numericamente muito repetidas, mas a experiência que elas formam é sempre uma. Da experiência, ou seja de todo o universal que se deteve na alma, unidade que, além dos objetos múltiplos, subsiste sempre, e que é una e idêntica em todos estes objetos, vem o princípio da arte e da ciência: da arte, se se trata de produzir as coisas; da ciência, se se trata de conhecer as coisas que existem.

6. Portanto, estes conhecimentos dos princípios não estão em nós completamente determinados; não procedem tão-pouco de outros conhecimentos mais notáveis que eles; vêm unicamente da sensação. […]

7. Desde o momento em que uma destas ideias, de entre aquelas em que não há nenhuma diferença3, se detém na alma, logo esta concebe o universal; há sensação do ser particular4), mas a sensibilidade eleva-se até ao geral. Tem-se a sensação de homem, por exemplo, e não a de tal homem particular, de Cálias. Estas ideias servem, portanto, de ponto de paragem, até que se detenham também na alma as ideias indivisas, quer dizer, universais. Assim, por exemplo, detém-se a ideia de tal animal na alma até que se forme a ideia de animal, que serve também de ponto de paragem para outras ideias.

É, pois, evidente ser a indução o que necessariamente nos dá a conhecer os princípios; porque é a sensação mesma que produz em nós o universal.

Aristóteles, Segundos Analíticos, II, cap. XIX, trad. franc. de Barthélemy Saint-Hilaire.


  1. Quer dizer, podem demonstrar-se os princípios como se demonstram as conclusões? 

  2. A ciência propriamente dita aplica-se exclusivamente ao conhecimento das conclusões demonstradas. 

  3. Os indivíduos são todos idênticos em relação ao universal, do qual são parte. 

  4. Aristóteles distingue aqui entre a faculdade de sentir, a sensibilidade que recai sobre o universal e o ato da sensação que recai sobre o particular. Ao ver Cálias, a sensibilidade reconhece que é um homem; e o ato especial da sensação que recai sobre este homem faz-nos conhecer que este homem particular é Cálias. (As notas a este texto são do tradutor francês.