Dreyfus – Introdução a “O que os computadores (ainda) não podem fazer”

Excertos de Dreyfus, “O que os computadores (ainda) não podem fazer”

Desde que os gregos inventaram a lógica e a geometria, a ideia de que todo raciocínio poderia ser reduzido a algum tipo de cálculo — de modo que todos os argumentos pudessem ser expostos de uma vez por todas — tem fascinado a maioria dos pensadores radicais da tradição ocidental. Sócrates foi o primeiro a dar voz a essa visão. A história da inteligência artificial bem poderia ter início em torno de 4.50 a.C. quando (segundo Platão) Sócrates exige de Euthyphro, um colega ateniense que, em nome da piedade, está para entregar o próprio pai, acusado de homicídio : — Quero saber que característica da piedade é essa que torna todas as ações pias … para que eu possa voltar-me para ela e usá-la como um padrão pelo qual julgue suas ações e a de outros homens. Sócrates está indagando de Euthyphro o que os teóricos modernos do computador chamariam de “procedimento útil” (effective procedure) — um conjunto de regras que nos diz exatamente, de momento a momento, como nos comportarmos.

Platão generalizou essa procura de uma certeza moral numa solicitação epistemológica. Consoante Platão, todo conhecimento deve ser expresso em definições explícitas que qualquer um possa aplicar. Se alguém não pudesse expressar seu “know-how” em termos de tais instruções explícitas — se seu saber como (knowing how) não se pudesse converter em saber que — isso não seria conhecimento mas simples crença. De acordo com Platão, os cozinheiros, por exemplo, que procedem pelo gosto e pela intuição, e os poetas que trabalham com a inspiração, não têm conhecimento : o que eles fazem não envolve compreensão e não pode ser compreendido. Mais genericamente, o que não se pode expressar explicitamente, por meio de precisas instruções — todas as áreas do pensamento humano que requerem habilidade, intuição ou senso de tradição — é relegado a uma espécie de indecisão arbitrária.

Platão, porém, não era um cibernético na acepção plena da palavra (embora, segundo Norbert Wiener, tenha sido ele quem primeiro empregou o termo), pois Platão procurava mais critérios semânticos do que sintáticos. Suas regras pressupunham que as pessoas compreendiam o significado dos termos constitutivos. Na República, Platão diz que a Compreensão (com o grau de sua linha dividida, semelhante a regra, a representar todo conhecimento) depende da Razão, que compreende uma análise dialética e, em última instância, uma intuição do significado dos conceitos fundamentais utilizados na compreensão. Destarte, Platão admite que suas instruções não podem ser completamente formalizadas. Semelhantemente, um moderno “expert” em computador, Marvin Minsky, observa, após uma tentativa de apresentar uma noção platônica de procedimento útil: “Esta tentativa de definição está sujeita à crítica de que a interpretação das regras fica a depender de alguma pessoa ou de algum agente.”

Aristóteles, que divergia de Platão nesta, como na maioria das questões referentes à aplicação da teoria à prática, observou com satisfação que a intuição era necessária para se aplicarem as normas platônicas

Na verdade, não é fácil descobrir-se uma fórmula pela qual possamos determinar até que ponto o homem pode errar, até incorrer em reprovação. Mas esta dificuldade de definição é inerente a todos os objetos da percepção; tais questões de graduação limitam-se às circunstâncias de um caso específico, em que nosso único critério é a percepção.

Para o projeto platônico atingir plenamente uma nova etapa, é necessário : que todo apelo à intuição e ao discernimento seja eliminado. Posto que Galileu descobriu que se poderia encontrar um puro formalismo para se descrever o movimento físico ignorando-se qualidades secundárias e considerações teleológicas, poder-se-ia supor que um Galileu do comportamento humano teria êxito na redução de todas as considerações semânticas (apelo aos significados) às técnicas de manipulação sintática (formal).

A crença de que tal formalização do conhecimento deve ser possível logo passou a dominar o pensamento ocidental. Ela já expressava uma exigência básica, moral e intelectual e o êxito da ciência física pareceu sensibilizar os filósofos do século dezesseis, como ainda parece sugerir a pensadores como Minsky que a exigência poderia ser satisfeita. Hobbes foi o primeiro a tornar explícita a concepção sintática do pensamento como cálculo “Quando o homem raciocina, nada mais faz senão conceber uma soma total decorrente da adição de parcelas — escreveu — pois a RAZÃO … não passa de um ato de calcular…”