Fernandes (Ser Humano:53-55) – Aparência e Realidade

A distinção entre aparência e realidade deve ser admitida em qualquer ontologia. Como mostrei em 1995 (Filosofia da Consciência), perceber, ter experiência de alguma coisa, ou “tomar algo como objeto” implica (ou pressupõe) aplicar, explícita ou implicitamente, a distinção entre aparência e realidade. Acontece que o uso geral de tais noções, não só nas línguas naturais, mas sobretudo pela Ciência e também na Filosofia (ver, por exemplo, a minuciosa desmontagem crítica que David Bell faz da obra de Husserl, reduzindo-a a sheer nonsense — Bell 1990), envolve paradoxos e contradições de tal ordem que dificilmente sabemos de que estamos falando ao usarmos as palavras “aparência” e “realidade” e seus derivados. Ou o que nosso uso delas nos estaria fazendo querer dizer… Em Filosofia da Consciência, mostrei que há uma assimetria ontológica entre as duas noções, no sentido de que só podemos compreender a distinção entre elas se tratamos a noção de realidade como de algum modo subordinada à de aparência. Em outras palavras, defendo a tese de que não faz sentido definir “aparência” em termos de “realidade”, tomando a noção de realidade como primitiva e a de aparência como derivada, e ainda assim obtermos uma distinção entre aparência e realidade que faça diferença.

“Realidade” é uma noção ontologicamente muito forte, pelo menos no sentido em que vem sendo usada, implícita ou explicitamente, tanto pela Ciência quanto pela Filosofia, inclusive fenomenológica, que acaba confundindo-a com a de “essência” ; prova disso é que, intuitivamente, a expressão “realidade real” é redundante, e a noção de “realidade (meramente) aparente” é contraditória. Em Filosofia da Consciência, no entanto, como também no presente ensaio, em que a noção mais forte é a de “Ser”, a noção de realidade torna-se fraca, pois confunde-se com a de existência, que é o que está projetado fora do Ser pela identificação. Por isso, é natural pensar que, se reduzimos tanto a realidade quanto a aparência à “Realidade”, não podemos mais compreender a própria distinção entre aparência e realidade, a fortiori tomar o que quer que seja como objeto. Já a noção de “aparência” torna possível o pensamento (falso, como logo veremos) de que aquilo que se toma como objeto possa “aparecer”. Isto se deve a que a noção de “aparência” é ontologicamente mais fraca, pelo menos no sentido em que vem sendo usada, implícita ou explicitamente, tanto pela Filosofia — com a possível, mas discutível, exceção da fenomenologia-quanto pela Ciência contemporâneas. Em Filosofia da Consciência, a noção de aparência torna-se relativamente forte, no âmbito do que está fora do Ser, ou “existe” : o que é reidentificável aparece, seja como “realidade”, seja como mera “aparência” ou ilusão. Esta concepção de “aparência” opõe-se, por um lado, àquela que é em geral adotada pela fenomenologia, no sentido de ser “transfenomenológica”, e não pressupor a redução eidética; e distingue-se, por outro lado, daquela em geral adotada pelo realismo científico. Tanto essa oposição à fenomenologia quanto essa distinção em relação ao realismo científico estão detalhadamente explicadas no livro de 1995, em que, dentre outras, defendo a tese de que, embora “perceber” pressuponha, ou implique, fazer uma distinção entre aparência e realidade, a fronteira entre uma e outra é móvel, nada podendo ser uma aparência ou uma realidade “em si mesma”. O que quero dizer é que, ao contrário do que acontece com as expressões “realidade real”, que é redundante, e com a noção de “realidade aparente”, que é contraditória, as expressões “aparência real” e “aparência (meramente) aparente” acabaram encontrando usos, e não apenas na linguagem natural, que lhes conferem algum sentido: pode-se falar da “realidade das aparências” (“aparência real” ), como se as aparências realmente aparecessem, ou das “aparências que enganam”, por não serem o que parecem (“aparência meramente aparente” ).

Ora, esses usos são extremamente confusos, pois, se as aparências realmente aparecessem, seriam a realidade (ou, no mínimo, “fariam parte” da realidade), ao invés de serem “meras” aparências; e se jamais aparecessem (à maneira, por exemplo, desse “personagem conceptual”, que se chama “realidade em si mesma” ), não seriam coisa alguma. Contudo, permanece verdadeiro que, se reduzimos tanto a realidade quanto a aparência, não à “Realidade”, mas à “Aparência”, então temos a impressão de que fica mais “fácil” ou natural fazermos a distinção entre aparência e realidade: a aparência apareceria, seja como aquilo que seria “meramente aparente”, seja como aquilo que seria “real”. Senão vejamos: por um lado, exemplo do que pensaríamos ser a realidade de uma aparência seria a ilusão irresistível, que, embora reconhecida como mera aparência, não desaparece. Outro exemplo seria a nossa desilusão, por exemplo, quando algo nos aparece, primeiro como real, depois como aparência. Neste caso, a ilusão não teria oferecido resistência ao que chamamos de “fatores cognitivos”, como as “crenças” : ao nos darmos conta de que o que tomávamos como real era uma ilusão, o real “desapareceria”, pelo menos como real, ou então seria substituído por outra coisa, que agora “apareceria” como real. Por outro lado, exemplo do que pensamos ser, não a realidade de uma aparência, mas a aparência de uma realidade, seria o sentido que o pensamento atribui, especialmente na Ciência, a um indicador ou sintoma de uma suposta “realidade subjacente”, que não aparece, mas seria responsável pelo que aparece.

SÉRGIO L. DE C. FERNANDES. Ser Humano. Um ensaio em antropologia filosófica. Rio de Janeiro: Editora Mukharajj, 2005.