Foucault (Coisas) – representação da representação

[FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas. Uma arqueologia das ciências humanas. Tr. Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 2000]

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O primeiro olhar lançado ao quadro nos ensinou de que é constituído esse espetáculo-de-olhares. São os soberanos. Adivinhamo-los já no olhar respeitoso da assistência, no espanto da criança e dos anões. Reconhecemo-los, no fundo do quadro, nas duas pequenas silhuetas que o espelho reflete. Em meio a todos esses rostos atentos, a todos esses corpos ornamentados, eles são a mais pálida, a mais irreal, a mais comprometida de todas as imagens; um movimento, um pouco de luz bastariam para fazê-los desvanecer-se. De todas as personagens representadas, elas são também as mais desprezadas, pois ninguém presta atenção a esse reflexo que se esgueira por trás de todo o mundo e se introduz silenciosamente por um espaço insuspeitado; na medida em que são visíveis, são a forma mais frágil e mais distante de toda realidade. Inversamente, na medida em que, residindo no exterior do quadro, se retiraram para uma invisibilidade essencial, ordenam em torno delas toda a representação; é diante delas que as coisas estão, é para elas que se voltam, é a seus olhos que se mostra a princesa em seu vestido de festa; da tela virada à infanta e desta ao anão que brinca na extremidade direita, desenha-se uma curva (ou então, abre-se o braço inferior do X) para ordenar em relação a eles toda a disposição do quadro e fazer aparecer, assim, o verdadeiro centro da composição, ao qual o olhar da infanta e a imagem no espelho estão finalmente submetidos.

Esse centro é simbolicamente soberano na sua particularidade histórica, já que é ocupado pelo rei Filipe IV e sua esposa. Mas, sobretudo, ele o é pela tríplice função que ocupa em relação ao quadro. Nele vêm superpor-se exatamente o olhar do modelo no momento em que é pintado, o do espectador que contempla a cena e o do pintor no momento em que compõe seu quadro (não o que é representado, mas o que está diante de nós e do qual falamos). Essas três funções “olhantes” confundem-se em um ponto exterior ao quadro: isto é, ideal em relação ao que é representado, mas perfeitamente real, porquanto é a partir dele que se torna possível a representação; nessa realidade mesma, ele não pode deixar de ser invisível. E, contudo, essa realidade é projetada no interior do quadro — projetada e difratada em três figuras que correspondem às três funções desse ponto ideal e real. São elas: à esquerda, o pintor com sua palheta na mão (auto-retrato do autor do quadro); à direita o visitante, com um pé sobre o degrau, prestes a entrar na sala; ele capta ao revés toda a cena, mas vê de frente o par real, que é o próprio espetáculo; no centro, enfim, o reflexo do rei e da rainha, ornamentados, imóveis, na atitude de pacientes modelos.

Tal reflexo mostra ingenuamente, e na sombra, aquilo que todos olham no primeiro plano. Restitui, como que por encanto, o que falta a cada olhar: ao do pintor, o modelo que é recopiado no quadro pelo seu duplo representado; ao do rei, seu retrato que se completa nesse lado da tela que ele não pode distinguir do lugar em que está; ao do espectador, o centro real da cena, cujo lugar ele assumiu como que por intrusão. Mas talvez essa generosidade do espelho seja simulada; talvez esconda tanto ou mais do que manifesta. O lugar onde impera o rei com sua esposa é também o do artista e o do espectador: no fundo do espelho poderiam aparecer — deveriam aparecer — o rosto anônimo do transeunte e o de Velásquez. Pois a função desse reflexo é atrair para o interior do quadro o que lhe é intimamente estranho: o olhar que o organizou e aquele para o qual ele se desdobra. Mas, por estarem presentes no quadro, à direita e à esquerda, o artista e o visitante não podem estar alojados no espelho: do mesmo modo o rei aparece no fundo do espelho, na medida mesma em que não faz parte do quadro.

Na grande voluta que percorria o perímetro do ateliê, desde o olhar do pintor, sua palheta e sua mão suspensa, até os quadros terminados, a representação nascia, completava-se para se desfazer novamente na luz; o ciclo era perfeito. Em contrapartida, as linhas que atravessam a profundidade do quadro são incompletas; falta, a todas, uma parte de seu trajeto. Essa lacuna é devida à ausência do rei — ausência que é um artifício do pintor. Mas esse artifício recobre e designa um lugar vago que é imediato: o do pintor e do espectador quando olham ou compõem o quadro. É que, nesse quadro talvez, como em toda representação de que ele é, por assim dizer, a essência manifestada, a invisibilidade profunda do que se vê é solidária com a invisibilidade daquele que vê — malgrado os espelhos, os reflexos, as imitações, os retratos. Em torno da cena estão depositados os signos e as formas sucessivas da representação; mas a dupla relação da representação com o modelo e com o soberano, com o autor e com aquele a quem ela é dada em oferenda, essa relação é necessariamente interrompida. Ela jamais pode estar toda presente, ainda quando numa representação que se desse a si própria em espetáculo. Na profundidade que atravessa a tela, que a escava ficticiamente e a projeta para a frente dela própria, não é possível que a pura felicidade da imagem ofereça alguma vez, em plena luz, o mestre que representa e o soberano representado.

Talvez haja, neste quadro de Velásquez, como que a representação da representação clássica e a definição do espaço que ela abre. Com efeito, ela intenta representar-se a si mesma em todos os seus elementos, com suas imagens, os olhares aos quais ela se oferece, os rostos que torna visíveis, os gestos que a fazem nascer. Mas aí, nessa dispersão que ela reúne e exibe em conjunto, por todas as partes um vazio essencial é imperiosamente indicado: o desaparecimento necessário daquilo que a funda — daquele a quem ela se assemelha e daquele a cujos olhos ela não passa de semelhança. Esse sujeito mesmo — que é o mesmo — foi elidido. E livre, enfim, dessa relação que a acorrentava, a representação pode se dar como pura representação.