Michel Henry (Barbarie) – A ciência tão somente: a técnica

Minha tradução do original em francês (Michel Henry, La barbarie. Paris: Grasset, 1987, p. 59 seg.)

A ciência, tal qual nós a entendemos hoje em dia, é a ciência matemática da natureza que faz abstração da sensibilidade. Mas a ciência só pode fazer abstração da sensibilidade por que faz de saída abstração da vida, é esta que ela rejeita de sua temática e, assim procedendo, ela a desconhece totalmente. É preciso bem compreender a razão deste desconhecimento e porque, do momento que ela realiza seu projeto de estabelecer um conhecimento objetivo da natureza, a ciência põe de lado a qualidade sensível e não mais a toma em conta. Este pôr de lado, com efeito, não é nada evidente. A ciência pode muito bem medir a superfície ocupada por uma cor, ela é capaz, além do mais, de avaliar a intensidade desta cor e de modo geral visar seu ser próprio e de o apreender. Existe uma teoria física dos cores, dos sons, dos sólidos como de todo elemento natural. Porque então a ciência pôs de lado a sensação, que ela não se preocupa de maneira alguma? O que na cor ou no som, logo mesmo que se tornam propriamente objetos de análise científica, é então negligenciado por ela, passado sob silêncio, esquecido?

Nada menos que o ser mesmo da sensação, que sua realidade própria. O ser da sensação, no dizer da ciência, aquele da cor e do som, é movimento material cuja determinação e finalmente o conhecimento são solidários aos progressos desta ciência que se denomina a física e se confundem com eles. Com tal “movimento” como com as “partículas” que lhe estão ligadas, o ser-real da sensação não tem justamente nada a ver: esta se sente ela-mesma, se experiencia ela-mesma, até o ponto que sua realidade consiste e se esgota neste experienciar-se a si-mesma cujos movimentos moleculares, partículas e outras determinações físicas são a princípio desprovidas.

Não somente o ser real da sensação difere daquele de um movimento material mas esta diferença é muito maior do que o espírito possa conceber, a supor que ele o possa, é a diferença ou de preferência o Abismo que, na origem do pensamento moderno e fundando justamente este, Descartes sob reconhecer entre a alma e o corpo, quer dizer aquilo que, se experienciando a si mesmo e se revelando a si mesmo nesta experiência muda de si, é vivente, é a vida, e aquilo que, incapaz de realizar a obra desta auto-revelação e privado dela para sempre, se acha sendo nada mais que uma “coisa”, nada mais que a morte. É porque, pretendendo apreender o ser da verdadeira sensação, a ciência matemática da natureza opera um deslocamento ou melhor sobrevoa este Abismo ontológico, substituindo à sensação que se experiencia a si mesma, ou melhor ao fato mesmo de se experienciar a si-mesmo, aquilo que, para lhe “corresponder” na natureza, a “suscitar” ou a “provocar”, não tem em todo caso em si nenhuma relação com a subjetividade deste se experienciar a si-mesmo, com a vida.

É portanto esta que a ciência elimina e, com ela, tudo aquilo que dela ascende de qualquer maneira e a ela remete. As qualidades sensíveis que a teoria física falha em tomar em conta são, aos olhos mesmos da maior parte dos fenomenólogos, qualidades transcendentes pertencentes ao mundo e a seus objetos, ligadas a eles como sua propriedade. É a superfície que é colorida, a muralha que assustadora, o cruzamento deserto e envolto em sombras que se torna suspeito. A ilusão é então apreender esta propriedades como determinação mundanas, de as confiar a exterioridade como se elas pudessem aí encontrar seu sítio verdadeiro e sua essência, crescerem nela e se nutrirem dela, serem enfim enquanto “exteriores”. Como se “cor” pudesse aí ter, “ameaça” ou “suspeita” sem que esta cor fosse sentida ou esta ameaça experienciada, e como se a superfície, o cruzamento ou a muralha pudessem sentir ou experienciar o que quer que seja. Não portanto neles, não é no mundo que estas determinações mundanas residem mas lá onde alguma coisa pode ser experienciada ou sentida: naquilo que se ente e experiencia a si-mesmo de maneira a poder sentir e experienciar o que quer que seja. A pretensão da ciência de reduzir o mundo da vida a um mundo de idealidades e de abstrações físico-matemáticas repousa sobre a ilusão prévia que as propriedades sensíveis deste mundo são as suas precisamente e lhe pertencem propriamente e que, pois a cor está na natureza e não na alma, pode-se apreender o ser natural, e isto por uma análise mais fina do que aquela da percepção, por uma análise física.

Interditar ao contrário a redução do mundo-da-vida ao mundo-da-ciência, só o pode um pensar capaz de apreender o mundo-da-vida na sua especificidade, quer dizer, tão estranho quanto isto possa parecer, na sua irredutibilidade ao mundo e a todo mundo possível — na medida que o mundo-da-vida é um mundo sensível e que o ser-sensível reside em última instância fora do mundo, na vida ela mesma. Pois a qualidade sensível sempre é a objetivação e assim a representação de uma impressão cujo ser-impressional é a auto-impressão, a saber a subjetividade absoluta enquanto a vida.

Aqui descobre-se para nós a insuficiência da démarche já clássica da fenomenologia que, tomando o contra-pé da ciência galileleana, realiza a questão em um retorno do mundo-da-ciência ao mundo-da-vida e deste à consciência deste mundo. Pois a consciência do mundo enquanto “consciência de”, enquanto intencionalidade, ou em última instância, a ek-stase do Ser onde intencionalidade por sua vez de desdobra, não permite ainda o recolhimento em si da sensação e assim sua vinda ao ser: ou melhor a sensação é ela, na eclosão do ek-stase, projetado fora de si, dis-posto e dis-persado como “sensação representativa” e como o húmus deste mundo que é o mundo da vida — e de tal maneira entretanto que esta sensação representativa sempre é a representação irreal da sensação real encontrando sua realidade na sua auto-sensação, não na consciência do mundo, mas na vida.

É o que já demonstrou nossa breve analise da obra de arte. Aqueles que, a partir das indicações geniais de Husserl, a reduzem a seu imaginário puro (distinguindo-a assim de seu suporte, o qual pertence só ao mundo da percepção) tiram daí a conclusão que o mundo real en si-mesmo não é belo e não saberia ser — nem belo nem feio. Se tal fosse o caso, a pilhagem da terra pela técnica da qual vai ser questão, seria sem gravidade, ou melhor não seria. Pois como se poderia desfigurar e se afundar no horrível aquilo que escaparia por natureza a toda categoria estética?

Uma outra consequência da tese do estatuto imaginário da obra de arte não seria menos contestável. Pois se a obra é um imaginário puro e se esgota em si, da mesma forma que não importa que imagem, procurar-se-ia em vão que fundamento atribuir a sua consistência interna, e por aí entendemos sua lisibilidade, a rigorosa determinação de suas partes enquanto elementos da composição estética, elementos dos quais mostrou-se que já são em si-mesmos estéticos. Com efeito, aquilo que caracteriza a imagem ordinária é que sustentada a cada instante pelo ato imaginativo da consciência que a estabelece e só sendo o ponto limite desta atividade, ela não sofre em face dela qualquer passividade do olhar e se encerra do momento que se interrompe o ato consciencial que a produziu. Eu não posso, diz Sartre, contar o número das colunas do Panteon do qual formo a imagem.

Ora um dos traços notáveis da obra de arte, é a clareza e a precisão dos detalhes (sobre a “Deposição” de Fra Angélico em São-Marcos, posso precisamente contar os personagens do primeiro-plano, o número de torres da muralha, aquele das casas e dos edifícios percebidos acima da muralha, etc.), sua localização rigorosa, a evidência e a força constringentes das relações internas da composição, relações que a fazem ser propriamente aquilo que ela é.

Mais significativo ainda é a maneira pela qual ele oferece-se a nós, não em sua carência ontológica, tal o termo frágil de uma atividade sem a qual ele afundaria em seguida no nada, mas como a massiva imposição daquilo que detém, através de sua consistência própria, o poder de nos colocar diante dele na situação do espectador — seja de um ser profundamente passivo a respeito daquilo que lhe é dado a contemplar. Isto é assim porque, nossas primeiras análises o sugeriram, o lugar da obra não é inicialmente o noema imaginário e constituído além do suporte mas a subjetividade ela-mesma, o lugar onde se forma originalmente toda a sensação e toda imagem, onde elas crescem delas-mesmas e assim se sustentam elas-mesmas, sucumbindo sob o peso de seu ser próprio. A cada elemento objetivo da composição — suporte e imagem neutralizados um e outro na dimensão específica da obra — corresponde portanto uma tonalidade afetiva particular na qual se auto-afeta tudo aquilo que é visto, imaginado e sentido, e que é emoção provocada pelo quadro, a estátua ou o monumento: é ela que o criador quis exprimir, é ela que o espectador ressente, coincidindo ao fundo de si-mesmo com a essência da arte.

Somente se, enquanto auto-afeição do ek-stase do Ser, a obra de arte tem o mesmo estatuto que o mundo sensível, em que ela difere dele? Nisto que ela é um mundo arranjado, cujos elementos estão dispostos e compostos de maneira a produzir sentimentos mais intensos e determinados, aqueles mesmos, acaba de se ver, que o artista quer exprimir. Ou melhor, se preferir, a natureza é uma obra ampliada, cujo efeito, quer dizer a percepção, só é bela a um certo grau, de modo acidental e no entanto essencial, se verdadeiro que ela é sensível como tal estética, obedecendo às leis da sensibilidade que são as leis da constituição de todo mundo possível.

Fazer abstração do mundo-sensível-da-vida não é apenas por de fora as qualidades sensíveis deste mundo, mas ao mesmo tempo, a vida ela-mesma, então descobre-se para nós, a ser pensado até o limite, a solidão da ciência, solidão tão extrema que a bem dizer ela não é justamente pensável. A ciência, nós mostraremos, não existe jamais só. Mas do momento que ela se afasta a vida de seu campo de investigação (e ela o faz necessariamente enquanto ciência), ela se comporta como se ela estivesse só, a partir daí é ela que vai ditar sua lei ao mundo — ao mundo sensível da vida que subsiste embora ela tenha feito abstração nele de tudo aquilo que é sensível e de tudo aquilo que é vivente. Uma tal situação na qual uma instância teórica vai decidir sobre o mundo-da-vida e sobre a vida ela-mesma sem tomá-los em conta de qualquer maneira caracteriza a fase atual da história do mundo, fazendo dela a Modernidade da qual podemos dizer que a sofremos, se é verdade que nela, e pela primeira vez desde a origem dos tempos, a vida cessou de ditar-se suas próprias leis a ela-mesma.

A ciência que se crê só no mundo e que se comporta como tal se torna técnica, ou seja um conjunto de operações de de transformações esgotando suas possibilidades na ciência e no seu saber teórico, à exclusão de toda outra forma de saber, à exclusão de toda referência ao mundo-da-vida e à vida ela-mesma. No entanto a essência da técnica, em sua dupla relação, positiva a respeito da ciência, negativa a respeito da vida, é difícil de apreender. Importa se propor uma elucidação sistemática disto.

As interpretações da técnica, que se multiplicam muito legitimamente em uma época onde cada um percebe as profundas mutações que afetam o mundo, sentindo ao mesmo tempo obscuramente a imensa ameaça que elas fazem pesar sobre a própria vida, dividem-se em dois grupos. Umas vêm na técnica moderna a afirmação progressiva da maestria do homem sobre o universo das coisas. Pois a técnica não designa nada mais que um conjunto de meios mais e mais numerosos, elaborados e potentes, e quem diz meios diz fins, remetida a interesses superiores que são aqueles da humanidade e que vão encontrar na utilização de todas as novas possibilidades oferecidas pela ciência, a ocasião enfim de se realizar. O “progresso” pode designar outra coisa que esta realização progressiva, permitida pela ciência, dos fins supremos da humanidade, fins idênticos a ela e constitutivas de sua essência?

Infelizmente destes “interesses superiores” da humanidade ela-mesma, quer dizer da essência da vida, a ciência assim como a técnica que desta emerge não sabem estritamente nada e não têm nada em conta. Por causa disto, fala-se a respeito das técnicas como “meios”, é preciso reconhecer que se tratam de meios muito particulares, os quais não estão mais a serviço de qualquer fim diferente deles mas constituem eles-mesmos o “fim”. Assim encontramo-nos na presença de um conjunto de dispositivos instrumentais, de maneiras de fazer, de operações, de procedimentos mais e mais eficazes e sofisticados, cujo desenvolvimento no entanto não conhece outros estímulos nem outras leis que as suas mesmas, e produz-se assim como um auto-desenvolvimento. O auto-desenvolvimento de uma rede de processos fundados sobre o saber teórico da ciência mas deixados por si-mesmos, jogando deles mesmos e para eles-mesmos, reagindo sobre este saber por consequência, o suscitando e o provocando, como sua verdadeira causa finalmente, em lugar de se deixar determinar por ele, tal é a essência da técnica moderna.

Qual destas duas concepções da técnica é a boa, como escolher entre elas? Antes não seriam elas “verdadeiras” uma e outra a sua maneira, se as reportar-se a uma história essencial da técnica e a momentos cruciais surgidos nesta história — momentos os quais cada uma dessas “interpretações” corresponderia como sua representação mais ou menos feliz, como a ideologia de uma época? Mas esta história só é justamente uma história essencial ao remontar à origem da techne, quer dizer a sua verdadeira essência, à possibilidade primordial de alguma coisa como uma “técnica” assim como as diferentes fases que esta iria se revestir em seu desenvolvimento. Fases não ao acaso, contingentes como as vicissitudes e as peripécias daquilo que chama-se em geral a história, mas necessárias ao contrário de alguma maneira enquanto se enraizando nesta essência original da techne, tornadas possíveis e desejadas por ela.

Aqui nos encontramos na presença de uma situação extraordinária pois a essência original da techne que devemos ter em vista para compreender as formas diversas da técnica e notadamente da essência da técnica moderna que faz abstração da vida, é a vida ela-mesma. “Técnica” com efeito designa de uma maneira geral um “savoir-faire”. Mas a essência da técnica não é um savoir-faire particular, é o savoir-faire como tal, ou seja um saber que consiste no fazer, quer dizer um fazer que porta em si seu próprio saber e o constitui. Ora o fazer constitui um tal saber e se identifica a ele enquanto se sente ele-mesmo e se experiencia em cada ponto de seu ser, enquanto fazer radicalmente subjetivo, retirando sua essência na subjetividade e tornado possível por ela. Todo savoir-faire qualquer que seja e quaisquer que sejam as formas porta em si este saber original que encontra sua essência no fazer e derradeiramente na subjetividade deste. O savoir-faire original é a praxis e assim a vida ele-mesma pois que é na vida que a praxis conhece-se, é nela que ela é o savoir-faire original que constitui a essência original da técnica. Como compreender então, a partir da vida ela-mesma, a emergência do processo do qual ela vai ser expurgada e que, sob o aspecto de uma rede de dispositivos e de procedimentos objetivos, empreende sob nossos olhos a devastação do mundo que lhe pertence como mundo-da-vida?

A essência original da técnica não é uma essência ideal flutuando em algum lugar diante de nós, no espaço inteligível: ela só é isto aos olhos da teoria. Enquanto praxis se auto-afetando ela-mesma, ela se determina e se individualiza nesta auto-afeição e por ela. Pois tudo que se sente se experiencia a si-mesmo e se experiencia necessariamente não apenas de tal e tal maneira mas ainda enquanto isto ou aquilo, sob a forma de uma experiencia singular, consequentemente; esta é ainda, por natureza, uma experiência individual, se é verdadeiro que a essência da auto-afeição é aquela da ipseidade. Esta praxis determinada, singular e individual, é nosso Corpo.

No exercício imanente de sua força que se auto-afeta e não cessa de se auto-afetar ela-mesma, o corpo se choca a uma primeira resistência, aquela dos sistemas fenomenológicos internos que cedem a seu esforço e constituem nosso “corpo orgânico”, ou seja o conjunto de nossos “órgãos”, não tal qual possam aparecer a um conhecimento objetivo qualquer mas precisamente tal qual nós os vivemos no interior de nosso corpo subjetivo como os modos de nosso esforço, como estas “configurações” primitivas das quais todo o ser consiste em seus ser-dado-ao-esforço e esgota-se nele. Em segundo lugar, no seio desta mesma zona de resistência oferecida pelo corpo orgânico, a pressão que pesa sobre ela e a faz ceder progressivamente, ou seja a operação dos poderes do corpo subjetivo, se choca a um obstáculo que não cede. Esta linha de resistência absoluta se fazendo sentir em sua continuidade no coração mesmo do corpo orgânico como limite insuperável de seu desdobramento, é a Terra – tal qual nós a vivemos, aqui ainda, quer dizer tal qual nós a experienciamos no interior do movimento corporal subjetivo que, no esforço mesmo que faz para a repelir e a vencer, vem se chocar contra ela.

O sistema de conjunto formado por meu corpo em movimento e fazendo esforço, meu Corpo imanente absolutamente subjetivo e absolutamente vivente — pelo corpo orgânico que se dá e se amacia sob seu esforço — pela Terra enfim que por sua vez recusa dobrar-se e opõe-se ao esforço, dando-se nele como aquilo que ele não pode vencer nem fazer ceder, tal é a essência original da techne. Tão difícil é para o Corpo subjetivo radicalmente imanente, no qual eu me mantenho enquanto o Eu Posso fundamental que eu sou, a tarefa de fazer ceder e por assim dizer recuar a Terra, e isto por conta da operação de seus poderes próprios, que ele [o Corpo subjetivo] inventou instrumentos, quer dizer arrancou à Terra elementos lhe pertencendo a fim de voltá-los contra ela, servindo-se deles para revolver, deslocar, modificar de múltiplas maneiras, lhe imprimir uma forma nova. O “instrumento” não é originalmente nada além do prolongamento do Corpo subjetivo imanente e assim como uma parte do corpo orgânico ele-mesmo, a saber aquilo que cede ao esforço e se dá como tal e somente desta maneira: como aquilo que advém à tomada de um movimento — aquilo que tomado, movido, manejado, manipulado por ele, só tira sua substância de ser seu termo em movimento, seu limite prático e não estável, problemático, cuja determinação e a fixação são deixadas ao poder deste movimento. Razão pela qual o instrumento é destacado da natureza para ser deixado à iniciativa do Corpo e posto a sua disposição.

Um tal destaque todavia só é aparente, fazendo apenas ressaltar um traço próprio da natureza inteira. É por essência que esta está à disposição de um Corpo original, a saber o correlato flutuante de um movimento ou se limite fixo — de tal maneira que esta “fixidade” determina-se apenas em um tal movimento e por ele. Não há Terra pensável senão como aquilo que nós colocamos ou podemos colocar o pé, como o solo sobre o qual nós tomamos apoio, nem “ar” concebível senão aquele que nós respiramos, e que talvez vá nos queimar, nem superfície, volume ou sólido senão aquele que podemos tocar, nem luz senão aquela que ilumina-se na subjetividade de nosso Olho. Corpo e Terra estão ligados por uma Copropriação tão original que nada advém no em-face de um puro Exterior, a título de objeto, para uma teoria, como alguma coisa que estaria lá sem nós — mas somente como o historial desta Copropriação original e como seu modo limite. Chamaremos Corpopropriação esta Copropriação original — tão original que faz de nós os proprietários do mundo, não de pronto, em razão de uma decisão de nossa parte ou de adoção por uma sociedade dada de um comportamento determinado a respeito do cosmos, mas a priori, em razão da condição corporal de ser enquanto corpo-propriado. Transformamos o mundo, a história da humanidade nada mais é que a história desta transformação, até o ponto que é impossível contemplar uma paisagem sem ver nela o efeito de uma certa praxis. Mas a transformação do mundo nada mais é que a disposição e a atualização da Corpopropriação que faz de nós os habitantes da Terra enquanto seus proprietários. Como o mundo é sempre por conseguinte o mundo-da-vida, é isto que nós compreendemos um pouco melhor: antes de ser um mundo sensível, enquanto o correlato de um movimento, enquanto corpopropriado.

Todas as dificuldades relativas à inteligência da praxis proveem do pensar: desde o momento que em lugar de viver o desdobramento do corpo orgânico na tensão subjetiva do Corpo original resolve-se representá-lo. É preciso então compreender como uma determinação subjetiva pode modificar um ente natural, como a “alma” pode agir sobre o corpo. Questão deveras insolúvel que, em seu deslocamento de um dimensão do ser onde a ação produz-se como sua simples operação, a uma outra, à esfera da “objetividade” onde nenhuma ação jamais se produziu e não se produzirá jamais, a “alma”, seja o corpo subjetivo, tornou-se o pensar, quer dizer precisamente a representação, seja o modo de abordagem ao qual a praxis enquanto subjetiva e vivente esquiva-se por princípio.

A representação da praxis suscita a ideologia que interpreta a técnica como a transformação instrumental da natureza pelo homem em vista de fins postos por ele. Por um lado uma tal ideologia representa com efeito a Copropriação original do Corpo e da Terra no seio da Vida. Por outro lado, enquanto sua representação, ela o altera gravemente na medida que: 1) tirando a ação fora de seu meio ontológico próprio, ela a deixa em si ininteligível; 2) rompendo a unidade interna do desdobramento imanente do corpo orgânico, ela projeta na exterioridade da representação, como tantos elementos dissociados, a “causa”, o “efeito”, os “meios”, o “fim”, sua “relação” tornada ela mesma ininteligível, seja as categorias do pensamento racional em lugar daquelas do Corpo. Se uma tal concepção da técnica, todavia revela-se hoje em dia profunda e cabalmente imprópria, não é apenas porque ela opera o deslocamento da praxis de sua completude real para aquele de sua representação falsificadora por um entendimento acomodador de causas e fins, é porque neste lugar mesmo de sua completude real, na subjetividade da vida, uma desordem se produziu, que ameaça o Ser em seus fundamentos.

Enquanto ela recobre-se com a praxis individual espontânea, a techne é apenas a expressão da vida, a operação dos poderes do corpo subjetivo e assim uma das formas primeiras da cultura. São as exigências internas da vida que a suscitam (exigências que se poderá em seguida se representar como suas “causas” ou como seus “fins”, são estruturas fenomenológicas do corpo original que determinam as modalidades de seu exercício ou melhor que são estas modalidades. Se esta atividade primitiva deve ainda se adaptar à natureza, em realidade é dela mesma que esta adaptação procede na medida que a Natureza verdadeira é a natureza do corpo-propriado e que a ação ou o trabalho elementar é apenas a atualização desta Corpopropriação. Nas formas superiores da cultura, como a arte, a ética ou a religião, que são elas também modos da techne, esta determinação da praxis pela vida é mais evidente ainda na medida onde o habitus moral ou religioso assim como a criação estética são expressões diretas e imediatas da subjetividade vivente, encontrando tanto como seu princípio, as formas de sua regulação, como o lugar de sua vinda ao ser, a saber, as modalidade concretas de sua realização.

A desordem ontológica produz-se quando a ação deixa de obedecer às prescrições da vida, não sendo mais aquilo que ela é no início, a saber a atualização das potencialidades fenomenológicas da subjetividade absoluta. Bem mais, parece que a ação desertou o lugar que é desde sempre o seu para se produzir doravante no mundo: nas usinas, barragens, centrais, por todo lugar onde funcionam incansavelmente e de todos os lados pistões, turbinas, engrenagens, maquinas de toda sorte, em resumo, o imenso dispositivo instrumental da grande indústria, o qual tende a se recolher nas descargas eletromagnéticas dos computadores da quinta geração e outras hiper-maquinas da “tecno-ciência”. Nesta indica-se com efeito o evento crucial da Modernidade enquanto passagem do reino do humano àquele do inumano: a ação tornou-se objetiva. A superfície da Terra assemelha-se a seu sub-solo físico-matemático a turbilhões de átomos, a bombardeios de partículas, a toda esta agitação imemorial e frenética, sem origem, sem causa e sem meta, da bio-evolução.

Dizemos “assemelha-se” pois não há ação possível a não ser na subjetividade e por ela, como praxis. É somente na imanência radical de sua corporeidade original que o corpo ampara-se e dispõe de cada um dos poderes afim, quando ele o quer, de “dele servir-se”. Desde o momento que cessa esta instalação em si-mesma que é o traço de todo poder e de todo fazer, desde o momento que a subjetividade não dispensa mais sua essência enquanto auto-afeição, nenhuma “ação” não se realiza jamais, mas somente deslocamentos materiais , tais como a queda d’água na cascata, os diversos mecanismos da indústria, os fenômenos de propagação ou as “trajetórias” da micro-física. Processos objetivos deste gênero que agem de si-mesmos como na cibernética ou no substrato micro-físico do universo, em resumo um conjunto de dispositivos que não são mais viventes e que não são mais a vida, tal é o conteúdo da técnica moderna, aquilo que ela manipula constantemente ou melhor aquilo que a constitui em seu ser, a tecedura da qual ela é feita e propriamente sua “substância”.

Ora descobre-se que tais processos não parecem “cegos” pois eles alcançam resultados coerentes e finalizados. No caso da técnica são o efeito de um saber. Qual saber? É aqui que se situa o retorno ontológico que inaugura os Tempos modernos ou, para designá-lo de uma maneira ainda exterior, a principal “revolução”, que produziu-sena “história dos homens”. Deixemos de lado as revoluções políticas que são apenas consequências ou sintomas. A gente aproxima-se do essencial quando, com Marx, se é capaz de reconhecer a inversão da teleologia vital que produziu-se ao final dos séculos XVIII — e no XIX — quando a produção de bens de consumo que caracteriza toda a sociedade cessou de ser exigida por e por conta deles, por conta dos “valores de uso”, para visar doravante a obtenção e o crescimento do valor de troca, quer dizer do dinheiro. Quando a produção tornou-se econômica, quando tratava-se de produzir dinheiro, quer dizer uma realidade econômica, em lugar e ao invés de bens úteis à vida e designados por ela, a face do mundo com efeito foi modificada.

Por um lado este mundo — a natureza original definida pela Corpopropriação, atualizando-se na realização das potencialidades objetivas da Corporeidade vivente e, ainda mais, como esta realização -, este mundo-da-vida portanto, não o mundo-da-intuição, mas o mundo-da-praxis, o mundo como efeito da praxis mas, mais essencialmente e por conseguinte, como seu exercício, o mundo não como Objeto mas como Ato, cujo Ato é o corpo — um tal mundo devia se encontrar gravemente perturbado pela irrupção de uma finalidade sem relação com aquilo que ele é em si e desde sempre -, a saber a produção de uma abstração, a produção de dinheiro. Semelhante perturbação consiste notadamente na aparição e no desenvolvimento para si de uma dimensão ontológica nova, a realidade econômica, que não pertence primitivamente nem à natureza corporal nem ao Corpo ele-mesmo. Por outro lado, do momento que ela é aquela do dinheiro e não mais dos valores de uso, esta produção modifica-se totalmente. Não sendo mais suscitada, definida e limitada pelas potencialidade da subjetividade, por suas “necessidades”, ela não encontra mais neles seus fins, o que equivale dizer que ela não é mais nela mesma a completude destas potencialidades. Ela cessa desde então de ser qualitativamente diferenciada para tornar-se quantitativa, “infinita”, como o dinheiro que se trata de produzir. Semelhante perturbação consiste notadamente na aparição e no desenvolvimento para si de uma dimensão ontológica nova, a realidade econômica, que não pertence primitivamente nem à natureza corporal nem ao Corpo ele-mesmo. Por outro lado, do momento que ela é aquela do dinheiro e não mais dos valores de uso, esta produção modifica-se totalmente.Não sendo mais suscitada, definida e limitada pelas potencialidade da subjetividade, por suas “necessidades”, ela não encontra mais neles seus fins, o que equivale dizer que ela não é mais nela mesma o completude destas potencialidades. Ela cessa desde então de ser qualitativamente diferenciada para tornar-se quantitativa, “infinita”, como o dinheiro que trata-se de produzir.

Ora esta “revolução econômica” — não uma revolução no interior de um universo econômico pré-dado no aparecimento deste e sua instalação no ser — não é a única e decisiva revolução vinda subverter a Corpopropriação que define a condição original dos homens sobre a terra e assim sua história, ela a preparou somente, agindo como sua causa, não sua verdadeira essência. A aceleração frenética da produção enquanto produção econômica suscita por razões econômicas (a necessidade de manter taxas de lucro e por conseguinte de mais-valia) a invenção e a proliferação de meios de fabricação novos, o aperfeiçoamento dos antigos e assim um extraordinário desenvolvimento técnico, o qual valoriza as invenções da ciência e as promove por sua vez. O meio de produção não é mais o “instrumento” que prolonga o corpo subjetivo e se acha pré-definido por ele, cuja manipulação é apenas a operação dos poderes deste corpo, seu exercício e assim sendo uma forma fundamental de cultura: este “meio”, este “instrumento” tornaram-se o dispositivo objetivo mecânico que funciona por si-mesmo na máquina, seja da indústria, da cibernética e talvez na natureza ela-mesma, tal qual ela aparece aos olhos dos modernos. Que decorre de uma tal mudança?

Isto, o saber que torna possível a ação e a regula não é mais o saber da vida mas aquele da ciência: tal é a revolução radical que veio subverter a humanidade do homem, fazendo planar sobre sua essência a mais grave ameaça incorrida por ela desde o início dos tempos. Quando o saber que regra a ação é aquele da vida, ele coincide com a ação, nada mais sendo do que sua auto-afeição. Semelhante saber incluído no fazer e coincidente com ele, nós o caracterizamos como a essência de todo saber-fazer. Eis porque ele habita cada forma de atividade, notadamente aquele que se diz “institiva”: a frequentação primitiva da Terra pelo homem, a possibilidade de se manter sobre seu solo, de andar, de trabalhar, o comportamento erótico, o exercício dos sentidos e dos movimentos em geral, os diversos poderes da subjetividade, aquele da imaginação, da memória, etc. Em todas estas atividades realiza-se a completude da vida, sua auto-realização e seu auto-crescimento, sua cultura.

Quando o saber que regra a ação é aquele da ciência, daí resulta: 1) que a natureza deste saber mudou totalmente, não sendo mais a vida uma consciência do objeto, e além do mais, esta forma de saber objetivo no qual se faz abstração dos sentidos ao mesmo tempo que a existência das qualidades sensíveis no mundo que ele conhece; 2) que este saber não é mais nele-mesmo a ação e não coincide mais com ela; 3) que ele não é mais também o saber da ação, um conhecimento objetivo desta, e isto porque a ação não é em si nada de objetivo e não saberia ser. Um tal saber justamente se tornou o saber de uma objetividade, quer-dizer de um processo natural aliás reduzido pela ciência a seus parâmetros ideais abstratos, às determinações físico-matemáticas do mundo da ciência galileleana. Ação e saber — identificado àquele da ciência — caem doravante um fora do outro, a primeira é somente uma espécie de curiosidade empírica, a ação pela qual o cientista move os globos de seus olhos ou vira as páginas de seu livro, ou melhor ela afasta-se do olhar, não sendo nem mesmo tomada em consideração, assim não é nada. O saber ao contrário é tudo, ele é o saber da ciência em seus desenvolvimento teórico indefinido. Seu correlato, é a Totalidade dos processos objetivos que são indistintamente aqueles do dispositivo instrumental da indústria, da cibernética e da natureza ela-mesma. Portanto, é bem o saber da ciência, mais precisamente da ciência da natureza que define agora o saber da techne, em lugar do saber da vida.

Mas se a techne, quer dizer a possibilidade primordial da ação e assim de toda ação concebível, reside na praxis encontrando sua essência na vida e na Corpopropriação original da natureza, como então a técnica moderna, quer dizer a informação e a transformação do mundo pela ciência, é ainda concebível? Como o saber da ciência, quer dizer um puro olhar teórico, seria suscetível de “agir” sobre os processos objetivos da natureza transformados nos dispositivos instrumentais da indústria e das máquinas em geral? Reconheceu-se o problema insolúvel da relação da “alma”, reduzida a este olhar teórico, e do “corpo”, compreendido como um ente natural e como um objeto.1

Digamos aqui somente que se a ciência parece capaz de imprimir a menor modificação material à natureza, é assim na medida que esta ação efetiva não se limita em nada à simples relação teórica de um sujeito conhecedor e de um objeto conhecido: em realidade ela toma emprestado sempre o atalho despercebido da Corpopropriação. Só aquele que tem mãos e olhos no sentido de um poder radicalmente imanente de preensão de de visão, só um ser originalmente constituído em si-mesmo como Corpo subjetivo e vivente — e o cientista não enquanto cientista mas enquanto um tal ser — pode-se não apenas virar as páginas de seu livro e o ler mas, da mesma maneira, realizar uma operação científica qualquer que seja, manipular um aparelho, apoiar sobre um teclado, seguir o destaque de uma variação sobre um gráfico, apreender enfim o resultado da experiência a mais sofisticada, resultado que se propõe inevitavelmente como um dado sensível e só é acessível sob esta forma, assim como a experimentação propriamente dita, a operação ou a manipulação remetem sempre a uma ação do Corpo original e o pressupõe.

Ora uma tal situação não se mantém somente na prática científica, ela determina a condição do trabalhador no mundo moderno. Aquilo que caracteriza isto, é que a parte do trabalhador vivente, quer dizer da praxis subjetiva, diminui progressivamente no interior do processo real de produção, enquanto a parte do dispositivo instrumental objetivo não para de crescer, sob a forma das máquinas da grande indústria clássica de imediato, da cibernética e da robótica em seguida. A lei da baixa tendencial da taxa de lucro na era capitalista nada mais é que a expressão sobre o plano econômico do fenômeno crucial que veio afetar a produção moderna: a invasão nela da técnica e da expulsão da vida.

Mesmo enquanto, todavia, a produção tende a se identificar aos dispositivos técnicos e assim à técnica ela-mesma, a manutenção em seu sei de uma parte decrescente de trabalho vivente não significa nada mais que isto como no caso da ciência pura, a transformação do mundo supõe um primeiro acesso aos processos objetivos que são identicamente aqueles da natureza e da técnica, e a possibilidade primordial de agir sobre eles. Acesso e capacidade de ação, na verdade, são somente um: consistem um e outro na Corpopropriação. Que a operacionalização desta — o trabalho vivente — seja reduzido a quase nada, isto quer dizer: tudo que fazia o homem, é o robô doravante que o faz. Só que o robô não “faz” nada, nada mais sendo que o desencadeamento e a efetuação de um mecanismo. A única ação real que subsiste — a ação que consiste no sentir que se age e nela se esgota -, é o ato de pressionar um botão de comando. Desde o início da era industrial e como simples efeito de substituição progressiva da “força de trabalho” por energias naturais, era possível pressentir a redução da atividade de trabalhadores a um trabalho de supervisão, o qual significa a atrofia da quase-totalidade das potencialidades subjetivas do indivíduo vivente e assim um mal-estar e uma insatisfação crescentes.

Ora a modificação que perverte a praxis subjetiva individual não implica somente sua redução a atos estereotipados e monótonos; ao mesmo tempo que este estreitamento e este empobrecimento que já indicam por eles-mesmos a ruína de toda cultura, um outro fenômeno se produz que leva a seu termo este processo de inculturação: a atividade destes atos insignificantes se inverte em um passividade total. É o dispositivo objetivo em seus diversos agenciamentos e disposições que dita em realidade ao trabalhador a natureza e as modalidades do pouco que lhe resta a fazer. Das capacidades do indivíduo para o trabalho, e por conseguinte das capacidades corporais, não se pode fazer uma total abstração, é verdade, e isto por quanto a Corpopropriação permanece o fundamento oculto mais incontornável da transformação do mundo, na era da técnica como em qualquer outra. Acontece apenas que, a força deste Corpo tendo sido substituída pelo dispositivo objetivo da máquina, ele não é mais levado em conta a não ser na medida exata onde o dispositivo deve do mesmo modo permitir a intervenção do indivíduo, por mais modesto que seja. Esta mede a parte insignificante que ainda concedida à vida e a seu saber, quer dizer a cultura. O computador mais complexo no limite é um teclado mais simples que aquele de uma máquina de escrever. A era da informática será aquela dos cretinos. Mas, e o dispositivo objetivo que tomou o lugar da vida?

Aquilo que está dis-posto como dispositivo instrumental da “ação” e assim como a ação ela-mesma reduzido aos movimentos ou aos deslocamentos objetivos realizando-se em um tal dispositivo, desejados e permitidos por ele, é disposto pela ciência. O fundamento da dis-posição do dispositivo é a ciência da natureza em todos os graus de seu desenvolvimento e de sua complexificação, seja finalmente a totalidade das teorias físicas. Tudo é construído pela ciência, em função dela e para ela, pois que são leis retiradas das teorias que serão as leis mesmas do funcionamento do dispositivo, de sua “ação”. A intervenção mínima da vida sob a forma por exemplo de uma alavanca de comando a deslocar não é nem mesmo necessária e tende a não o ser por quanto o dispositivo esta disposto de tal maneira que é capaz de se auto-regrar e de se auto-controlar ele-mesmo, tornando-se assim por dizer um sistema, fiel reflexo do sistema teórico do qual surge com a “realização”.

Mas isto é uma maneira imprópria de falar. Não se parte jamais de um modelo ideal do qual se buscaria uma aplicação “prática”. O modelo nada mais é que a teoria de uma realidade, o pôr em evidência regulações as quais ela obedece, e esta realidade, nós a entendemos, é ao mesmo tempo aquela da natureza material e do dispositivo ele-mesmo. Assim a técnica não é outra coisa que esta esta natureza, uma natureza cujas regulações são conhecidas, de maneira a poder serem operacionalizadas e regradas, por elas mesmas sempre e para elas — para elas: para que elas se ponham a operar e que aconteça enfim aquilo que pode acontecer. A técnica é a natureza sem homem, a natureza abstrata, reduzida a ela-mesma, rendida a ela-mesma, se exaltando e se exprimindo ela-mesma, seu auto-desenvolvimento, de tal maneira que todas as virtualidades e potencialidade inclusas nela devem ser atualizadas, para elas e para isto que elas são, para o amor delas mesmas, para que seja feita tudo que pode ser feito, quer dizer tudo aquilo que a natureza poderá vir a ser. Trata-se de fabricar ouro, ir à Lua, construir mísseis capazes de auto-direcionar, de se auto-supervisionar antes de decidir eles-mesmos o momento de sua destruição, e da nossa. A técnica é alquimia; ela é a auto-realização da natureza em lugar e vez da auto-realização da vida que nós somos. Ela é barbárie, a nova barbárie de nosso tempo, em lugar e vez da cultura. Enquanto ela expulsa a vida, suas prescrições e suas regulações, ela não é apenas a barbárie sob sua forma extrema e mais desumana que foi dada ao homem conhecer, ela é loucura.

É apenas aos poucos que tomamos pé daquilo que implica em nosso mundo, quer dizer na vida dos homens, a expulsão da vida ela-mesma. Um nota todavia se impõe desde já, que nos permitirá perceber um outro traço decisivo da modernidade, a saber a reversão da relação da técnica e da economia, reversão que se produz sob nossos olhos. Até a revolução técnica (a qual, lembremo-nos, consiste nisto que a técnica, tendo excluído dela a vida e reduzido a um processo — objetivo, constitui doravante seu próprio fim), o dispositivo instrumental da produção do trabalho e assim do trabalho disposto pela vida e para ela. Pela vida, enquanto o instrumento pertencia ontologicamente a Corpopropriação, se inscrevendo nela como uma modalidade de sua atualização na ação. Pela vida, por quanto esta ação era determinada pela produção de valores de uso, quer dizer de valores vitais.

No momento mesmo onde a telelologia vital se inverte em uma teleologia propriamente econômica visando a produção de valores de troca, estes na verdade não perdem totalmente sua ligação com a vida, permanecem secretamente subordinados aos valores de uso e, por intermediação deles, ao trabalho vivente. Não somente o dinheiro é apenas a representação em segundo grau deste trabalho (enquanto representação do trabalho abstrato ou social, o qual é representação do trabalho real ou vivente) mas seu investimento necessário em um processo efetivo de produção, sua troca contra valores de uso das matérias primas e das maquinas e, mais essencialmente ainda, contra o trabalho vivente único capaz de pôr em jogo todo este processo e de produzir nele valor de troca, mostram muito bem que o dinheiro não subsiste jamais por ele-mesmo, que ele é constantemente obrigado, mesmo quando define no capitalismo a nova finalidade econômica, de se converter em seu contrário, de retornar a sua fonte, à vida. A qual se impõe ainda, no final do processo, sob a forma de consumo do qual nenhuma produção pode omitir. Suscitar então um consumo artificial, criar novas necessidades a fim de absorver esta produção desregrada pelo valor de troca mas ordenada apesar de tudo a estas necessidades artificiais, e por eles, à subjetividade da vida, era ainda, aos olhos de Marx ele-mesmo, uma maneira de desenvolver e de enriquecer a vida, um fator de cultura.

Nós dizemos: toda produção é tributária de um consumo de não pode omiti-la. O valor de troca que se trata de produzir no capitalismo não se dá que sob a forma de um valor de uso cuja natureza e as propriedade são determinadas pela subjetividade. Isto se impõe, no seio mesmo de um sistema de valorização, uma teleologia que não pode ser totalmente afastada e que enraiza todo este processo em uma ontologia da vida. É o enraizamento que se encontra rompido no universo da técnica: o processo de produção não tem mais sua razão última, além dele mesmo, no valor de uso e na vida, mas antes, em um estado de coisas do qual a vida é ausente, onde ela não é jamais tomada em consideração, nem a título de causa, nem a título de fim, nem mesmo como meio. Qual o estado de coisas do qual procede toda a produção mo universo da técnica, quando esta produção, tendo evacuado fora dela a praxis e tendendo constantemente a faze-lo, encontra-se remetida a um processo objetivo?

É o estado anterior do dispositivo instrumental ele-mesmo, seja o conjunto das técnica existente em um momento dado. A partir destes é possível construir novos cuja natureza é pré-determinada no Todo das técnicas pré-existentes, o qual é identicamente o Todo do saber científico no mesmo instante. Ora uma tal possibilidade é muito mais que uma possibilidade: como nada existe senão o estado de coisas definido por este conjunto de técnicas e pelo saber científico que se sobrepões com ele, é este estado de coisas que vai decidir o “futuro”, que quer dizer seu próprio desenvolvimento. E eis como. em função de uma multiplicidade de processos objetivos cientificamente definidos e marcados, todo dispositivo novo, toda técnica implicada de alguma maneira na rede das técnicas existentes, resultante de seu entrecruzamento e de seu por em relacionamento, suscetível de ser concebido e realizado a partir delas e das possibilidades que elas compõem, o será certamente, por um movimento invencível. É este movimento que se denomina o progresso.

A noção de progresso veio assim a designar de maneira exclusiva o progresso técnico. A ideia de progresso estético, intelectual, espiritual ou moral, assentado na vida do indivíduo e consistindo no auto-desenvolvimento e no auto-crescimento das múltiplas potencialidade fenomenológicas desta vida, na sua cultura, não tem mais lugar, não dispondo de qualquer lugar designável na ontologia implícita em nosso tempo segundo a qual só há realidade objetiva e cientificamente conhecível. O progresso da técnica que era compreendido tradicionalmente como o efeito de um descoberta teórica “genial” quer dizer realizada por um indivíduo excepcional (Pasteur), ele também mudou totalmente de natureza. Pelo viés da atividade individual do inventor e de sua própria vida ele se ligava ao progresso da cultura em geral e apreendida como uma de suas ramificações. Mas nada disto se encontra hoje em dia no desenvolvimento da técnica se realizando como auto-desenvolvimento. Pode-se apenas dizer: se as técnicas a, b, c são dadas cuja composição é a técnica d, esta será produzida, inevitavelmente, como seu efeito seguro, pouco importa por qual ou onde. Assim explica-se a simultaneidade das descobertas em diversos países, sua indubitabilidade também. Sua “aplicação” não é a sequência eventual e contingente de um conteúdo teórico anterior, este já é uma “aplicação”, um dispositivo instrumental, uma técnica. Nenhuma instância existe, por outro lado, que seja diferente deste dispositivo e do saber científico materializado nele para decidir se convém ou não “realizá-lo”. Assim o universo técnico prolifera como um câncer, se auto-produzindo e auto-normalizando ele-mesmo, na ausência de toda norma, na sua perfeita indiferença a tudo aquilo que não é a vida.
O desenvolvimento econômico, com suas leis aparentemente autônomas, sua finalidade abstrata, suas contradições incompreendidas, seus efeitos imprevisíveis, era vivido pelos homens, desde que ele constituiu um mundo específico, como um destino estranho, lhe distribuindo alternativamente prosperidade e miséria, e frequentemente esta última. Ainda assim este destino tinha sua substância de sua própria vida, de seu trabalho, de sua esperança e de seu sofrimento, mesmo se, de maneira incompreensível, ele retornasse contra eles seu próprio esforço, para os recalcar e submeter. Com a técnica, o caráter autônomo do desenvolvimento cessou de ser uma aparência, é um movimento que não tem qualquer relação com a vida, que não lhe demanda nada e que não lhe aporta nada, nada que lhe assemelhe em todo caso, que seja conforme a sua essência e a seus votos. Aquilo que ele lhe aporta, aquilo que ele lhe impões, é justamente o outro que a vida, são os procedimentos e os mecanismos escondidos no coração da natureza, que a ciência extirpa de seu seio, que ela arranca da Finalidade obscura onde estão envelopados, para os livrar a eles-mesmos, a sua abstração e a seu isolamento: é então que eles se desencadeiam, tecendo entre eles conexões artificiais, se apoiando um no outro, se ajuntando um ao outro, segundo uma ordem acidental que não é mais aquela da Natureza nem aquela da Vida, que não é mais uma ordem mas um processo selvagem onde toda possibilidade nova nascida de um encontro fortuito se torna a única razão de um desenvolvimento que nele não tem mais qualquer. Livre de toda ligação, separada de toda totalidade coerente e finalizada, a técnica mergulha adiante, direto diante de si, como um foguete interplanetário, sem saber donde ela vem, onde vai, nem porque. Na sua exterioridade radical à vida, à vida que se sente e se experiencia ela-mesma e se abastece nela, naquilo que ela experiencia, a lei de sua ação e de seu desenvolvimento, ela se tornou uma transcendência absoluta, sem razão e sem luz, sem face e sem olhar, uma “transcendência negra”.

A supor que,no seio deste desenvolvimento monstruoso da técnica moderna, a aparição de procedimento novo — a fissão do átomo, uma manipulação genética, etc. — põe um questão à consciência de um cientista, esta questão será varrida como anacrônica porque, na única realidade que existe para ciência, não há nem questão nem consciência. E se por acaso um cientista se deixasse tomar por seus escrúpulos — o que não acontece jamais pois um cientista está a serviço da ciência-, cem outros se levantariam, já se levantaram para se interpor. Pois tudo aquilo que pode ser feito pela ciência deve ser feito por ela e para ela, pois não nada mais que ela e que a realidade que ela conhece, a saber a realidade objetiva, cuja técnica é a auto-realização.


  1. É certamente notável que o cartesianismo não se deparou com este problema e não tropeçou sobre ele a não ser no momento que abordou de maneira teórica, quer dizer científica. e objetiva, principalmente nas Paixões da alma. Enquanto Descartes manteve-se na redução fenomenológica, redução no interior da qual se situam as análises do presente trabalho, a ação do corpo não apresentava qualquer dificuldade, sua possibilidade tinha sido resolvida espontaneamente e esta é a razão pela qual pode-se dizer que há em Descartes um pressentimento admirável da concepção do corpo subjetivo, como vê-se nas Respostas às quintas objeções quando é questão de uma. “ambulandi cogitatio”, quer dizer da experiência subjetiva original do caminhar como idêntico a esta. Cf. Obras, op. cit., VII, p. 352.