Latour (Laboratório) – A fabricação dos fatos científicos

B. Latour, S. Woolgar, A vida de laboratório

Quando o estatuto de um enunciado tende para um fato sob o impulso de uma série de forças agonísticas, existem outras forças que, ao contrário, tendem a fazer dela um artefato. Vemo-lo nos intercâmbios citados no início do presente capítulo. O estatuto local de um enunciado depende a todo momento da resultante dessas forças. A observação direta permite acompanhar o processo de formação e o abandono de um enunciado dado: o que se vê como um “objeto exterior” é de repente classificado como “pura cadeia de palavras”, “ficção” ou “artefato”. Observar a transformação de um enunciado de fato em artefato apresenta um trunfo maior: se se conseguir mostrar que o “efeito de verdade” da ciência é submetido a um movimento de fluxo e refluxo, fica muito mais difícil sustentar que o fato se distingue do artefato pois o primeiro se basearia na realidade, enquanto o segundo seria apenas puro produto das circunstâncias locais e dos estados psicológicos. A distinção entre realidade e condições locais só existe após um enunciado estabilizar-se como fato.

Em outras palavras, o argumento de “realidade” não pode ser usado para explicar o processo pelo qual um enunciado torna-se fato, pois só depois que ele se torna fato aparece o efeito de realidade. Acontece de o efeito de realidade ser apresentado em termos de “objetividade” ou de “exterioridade”. É precisamente por-que ocorre uma controvérsia que o enunciado cinde-se numa entidade e num enunciado sobre esta entidade; esta cisão nunca se produz antes da resolução da controvérsia. […]

Que não nos enganemos: longe de nós a ideia de que os fatos — ou a realidade — não existem. Isto basta para nos afastar do relativismo. Só afirmamos que esta “exterioridade” é consequência do trabalho científico e não sua causa. Esta é a razão pela qual atraímos a atenção para a importância do momento em que as coisas acontecem. Em janeiro de 1968, o TRF aparecia como uma construção social contingente e os próprios cientistas eram relativistas no sentido de que não excluíam a eventualidade de sua construção da realidade ser um artefato. Mas em janeiro de 1970, o mesmo TRF é um objeto da natureza descoberto pelos cientistas que, nesse meio tempo, metamorfosearam-se em realistas empedernidos. Uma vez resolvida a controvérsia, considera-se a realidade como a causa dessa resolução; porém, enquanto dura a controvérsia, a realidade é consequência do debate, ela segue cada meandro e cada volteio dele como se fosse a sombra das preocupações científicas.