Leroi-Gourhan (Gesto) – Para além da escrita: os perigos e as promessas da linguagem audiovisual

Curiosamente, a sociologia da linguagem, fazendo eco com o filósofo, mostra-nos um desaparecimento progressivo da escrita nas nossas sociedades dotadas de enormes meios «audiovisuais». Para o sociólogo, tal como para o filósofo, a linguagem literária foi um simples episódio na evolução das culturas humanas. Mas, se a substituição da escrita pela imagem prefabricada, visual ou sonora, favorece a rapidez da informação científica, em contrapartida, conduz a massa dos homens a uma temível e total passividade.

O total enfeudamento da actividade mental ao desenvolvimento linear da escrita representa para o homo sapiens uma promessa só realizável por uma minoria de aptidões específicas; pois se, para a maioria dos homens, á leitura de inscrições curtas e de carácter prático é algo de normal, já a aplicação do pensamento ao longo de todo um texto, inclusive de um texto concreto, exige uma reconstituição imagística que continua a ser-lhe absolutamente esgotante. Apesar do intenso exercício desenvolvido por várias gerações, a reconquista do equilíbrio paleontológico veio rapidamente a incentivar-se, pelo que o mito-grama, a partir do século XIX, e sob a forma de ilustração, voltou a assenhorear-se das leituras à medida que a alfabetização atingia as classes populares: assim, no decurso do século XIX, a banda desenhada introduziu-se na imagística, a qual começou por ser puramente mitográfica nas suas grandes composições, para vir depois a ser compartimentada em pequenos quadros contíguos ao texto. A linearização do desenho de ilustração segue-se à difusão da leitura entre as grandes massas, vindo a atingir o seu apogeu na actual leitura popular. A rádio e a televisão, juntamente com o cinema, acabaram por completar este retorno à literatura oral e à informação visual sem qualquer passagem 1 pelas formas imaginárias.

Assaz curiosamente, podemos interrogar-nos sobre se as técnicas audiovisuais vêm realmente a alterar o comportamento tradicional dos antropídeos. E também podemos perguntar-nos qual será o destino da escrita num futuro mais ou menos longínquo. É certo que ela constituiu, e isto durante vários milénios, independentemente do seu papel de conservador da memória colectiva em função do seu desenvolvimento unidimensional, o instrumento de análise de onde o pensamento filosófico e científico veio a emergir. A conservação do pensamento pode agora ser concebida por vias totalmente diferentes da dos livros, os quais já só por pouco tempo conservarão ainda a vantagem da sua rápida manipulação. Uma vasta «magnetoteca» de selecção electrónica fornecerá num futuro próximo a informação pré-seleccionada e instantaneamente formulada. A leitura conservará ainda por vários séculos a sua importância, não obstante uma sensível regressão relativamente à maioria dos homens, mas a escrita parece verosimilmente votada a um rápido desaparecimento, uma vez substituída por aparelhos dictafónicos de impressão automática. Dever-se-á ver nisto uma espécie de reconstituição do estado anterior ao enfeudamento fonético da mão? Eu sentir-me-ia mais tentado a ver aí, a par de um simples aspecto do fenómeno geral de regressão manual, algo de semelhante a uma nova «libertação». Quanto às suas consequências a longo prazo sobre as formas do raciocínio, sobre um hipotético retorno ao pensamento difuso e multidimensional, elas são perfeitamente imprevisíveis no momento actual. Para o pensamento científico, pelo seu lado, a necessidade de ter de passar pela teia tipográfica representa antes um incómodo, sendo certo que se houvesse algum processo de apresentar os livros de tal modo que a matéria dos diferentes capítulos se patenteasse simultaneamente sob todas as suas incidências, os autores e os seus leitores tirariam disso consideráveis vantagens. Contudo, é certo que, se o raciocínio científico não tem certamente nada a perder com o desaparecimento da escrita, já a filosofia e a literatura assistirão, sem dúvida, no domínio das suas formas, a uma considerável evolução. Isso não será particularmente lamentável, já que o texto impresso servirá para preservar as formas de pensar curiosamente arcaicas de que os homens se terão servido durante o período do grafismo alfabético; quanto às novas formas, elas estarão para as antigas como o aço para o sílex, ou seja, certamente não serão um instrumento mais cortante, mas sem dúvida um instrumento mais manejável. A escrita passará para o plano da infra-estrutura sem alterar o funcionamento da inteligência, à semelhança de uma transição cuja primazia datasse já de há vários milénios. (…)

A escrita alfabética conserva, no pensamento, um certo nível de simbolismo pessoal. Com efeito, na escrita, a visão conduz a uma reconstrução do som que se mantém individual, e numa margem reduzida mas segura, a uma interpretação pessoal da matéria fonética. Mais ainda, as imagens desencadeadas pela leitura mantêm a imaginação do leitor, propriedade de riqueza variável. Mudando de plano, substituindo os símbolos ideográficos por letras, o alfabeto não abole todas as possibilidades de recriação. Por outras palavras, se a escrita alfabética satisfaz as necessidades da memória social, conserva no indivíduo o benefício do esforço de interpretação que a mesma exige.

Podemos interrogar-nos se a escrita não está já condenada, apesar da importância crescente da matéria impressa actualmente. Em meio século, o registo sonoro, o cinema e a televisão intervieram no prolongamento da trajectória que tem a sua origem antes do Aurignacense.

A situação que se tende a estabelecer representaria assim um aperfeiçoamento, pois economizaria o esforço da «imaginação» (no sentido etimológico). Mas a imaginação é a propriedade fundamental da inteligência, e uma sociedade em que a propriedade de forjar símbolos enfraquece perderia a sua propriedade de agir. Daqui resulta, no mundo actual, um certo desequilíbrio ou miais exactamente a tendência para o mesmo fenómeno que caracteriza o artesanato: a perda do exercício da imaginação nas cadeias operatórias vitais.

A linguagem audiovisual tende a concentrar a elaboração total das imagens nos cérebros de uma minoria de especialistas que transmitem aos indivíduos matéria totalmente figurada. O criador de imagens, pintor, poeta ou narrador técnico, sempre constituiu, mesmo no paleolítico, uma excepção social, mas a sua obra mantinha-se inacabada, pois solicitava a interpretação pessoal, independentemente do nível do observador da imagem. Actualmente, a separação, altamente proveitosa no plano colectivo, está em vias de realização numa pequena elite, órgão de «digestão» intelectual, e as massas, os órgãos de assimilação pura e simples. Esta evolução não afecta apenas o audiovisual, que apenas é o resultado de um processo geral que engloba o todo gráfico. De início, a fotografia não trouxe modificação na percepção intelectual das imagens, como qualquer inovação apoiou-se no preexistente: os primeiros automóveis foram as carruagens sem cavalos e as primeiras fotografias retratos e movimentos sem cor. O processo de «pré-digestão» apenas se verifica a partir da difusão do cinema, que modifica completamente a concepção da fotografia e do desenho num sentido pictográfico, propriamente dito. O instantâneo desportivo e a banda desenhada contribuem, como o «digerido», para a separação, no corpo social, entre o criador e o consumidor de imagens.

O empobrecimento não se verifica nos temas, mas no desaparecimento das variantes de imaginação pessoais. Os temas de literatura popular (ou sabedoria) sempre foram em número muito limitado; não é, portanto, extraordinário ver o mesmo super-homem forte e belo, a mesma mulher fatal, o mesmo colosso mais ou menos estúpido, entre os Sioux e os bisontes, em plena Guerra dos Cem Anos, a bordo de um navio pirata, num ruidoso bólide na perseguição de gangsters, entre dois planetas, numa nave espacial. A repetição incansável do mesmo stock de imagens corresponde a essa fraca imaginação que deixa nos indivíduos o exercício de sentimentos que gravitam em volta da agressividade ou da sexualidade. Não é de duvidar de que as bandas desenhadas traduzem muito melhor a acção que as velhas imagens de Epinal. Nestas últimas, o soco era um símbolo inacabado, o gancho do super-homem, com aspecto de traidor, nada adiciona à precisão traumática; tudo se torna uma realidade absolutamente nua, a absorver sem esforço.

(A. Leroi-Gourhan, O Gesto e a Palavra, t. I, Edições 70, 1981, pp. 211, 212, 213; t. II, Albin Michel, 1964, pp. 261-262.)