Ana Paula Rosendo – Michel Henry, Galileu e a ciência moderna

Ana Paula Rosendo. ‘NO PRINCIPIO ERA O ACTO’. Ecos do excerto de um parágrafo de Wittgenstein no pensamento de M. Henry

Na sua crítica à modernidade Henry considera que quando Galileu afirmou que as qualidades sensíveis não poderiam mais ser consideradas saber, reafirmou as singularidades implícitas na herança grega. O racionalismo moderno considera que todo o saber que radica na experiência subjectiva deverá ter o estatuto de algo falso e ilusório. Contudo, a principal fonte de alimentação da cultura é a Vida no seu concreto, isto é, o sujeito vivo, porque a cultura é o resultado da praxis humana nos seus vários domínios e sob as mais variadas formas, enraizando no movimento incessante da Vida e na sua auto-prova, assim como no conjunto de respostas patéticas que a Vida dá a si mesma1. Toda a cultura é, para Henry, auto-revelação da Vida Absoluta e encontra-se presente em todos os modos de praxis subjectiva embora as formas superiores sob as quais se manifesta sejam a Estética, a Ética e a Religião.

Nesta óptica, a ilusão de Galileu conduz a um estado de barbárie porque reside na consideração da ciência como um saber absoluto sobre o “mundo real”, uma tentativa de ultrapassagem da particularidade e da relatividade do saber subjectivo. Constrói-se negando o sensível, negando o particular, negando os sentimentos. Nega os sujeitos e esvazia-os da sua singularidade inefável livrando-se deles na sua procura de objectividade. A realidade passa a ser considerada como algo de objectivo e de externo, estabelecendo-se uma cisão entre interioridade exterioridade, corpo e alma. Tudo passa a ter o estatuto de fenómeno que se manifesta na luz do visível. O desenvolvimento tecnológico toma-se na auto-realização do real e não mais o sujeito. As propriedades subjectivas são esvaziadas, não apenas dos sujeitos, mas também da Natureza. Esta ilusão de Galileu tem, segundo Henry, as suas raízes numa angústia, que é a angústia gerada pela auto-afecção originária e patética na Vida e que faz com que haja uma necessidade de procurar “certezas palpáveis, visíveis”. Esta ilusão produziu uma inversão radical no conceito de humanidade ao considerar que o mais importante é a consciência do objecto, a par de também ter produzido um desenraizamento da acção que deixou de radicar no sujeito vivo para passar a ser considerada como uma techne abstracta e objetiva. A consideração da acção como techne abstracta e objectiva faz com que esta deixe de derivar da imanência do corpo subjectivo impondo-se-lhe do exterior. A exterioridade passa a dirigir a interioridade, as entidades noemáticas ganham vida própria. A ciência ou a ilusão de Galileu desenvolve-se considerando as entidades noemáticas objectivas e, por esse motivo, conseguiu operar uma inversão na corpopriação originária do conhecimento e conduziu à “naturalização”2 do corpo e da alma como afecto. A técnica deixa de ser um prolongamento da acção natural de corpopriação para se tomar num complemento da natureza constituindo-se como uma teleologia para onde tudo deve tender. A natureza deixou de ser corpropriada para passar a ser um objecto material fundado em idealidades matemáticas.


  1. Henry, M., La barbarie, Paris, P.U.F., 2008, p. 45. 

  2. Naturalixação em Henry tem o sentido marxista de alienação, de ideia exterior inculcada no espírito. Os racionalismos científicos de várias ordens naturalizam o corpo subjectivo.