Pensamento Geográfico

Excerto de DE CASTRO, Murilo Cardoso. SIG - Sistema de Informação Geográfico ou sig - sintetizador de ilusões geográficas. Desconstruindo uma formação discursiva. Tese de Doutorado em Geografia. UFRJ, 1999.

Em continuidade ao Risorgimento italiano, introduz-se no inicio do século XV, o ensino da língua grega na universidade de Florença, graças à Emmanuel Chrysoloras (1350-1415). Um novo ímpeto é dado ao desenvolvimento das ciências naturais, ainda incondicionalmente baseadas na obra de Aristóteles. Através do acesso direto ao acervo de obras da Antiguidade, em particular da Grécia e da Alexandria, aos poucos transladados de Constantinopla para Veneza e Florença, o humanismo abre outros caminhos em meio à Rinascita em curso, que iam muito além da renovação artística.

Entre os primeiros trabalhos resgatados do passado e traduzidos do grego para o latim, encontravam-se as obras geográficas de Claudius Ptolomeu (II dC) e de Estrabão (I dC). A obra magistral de Ptolomeu se tornou logo um clássico, com suas sucessivas edições (mais de 40 nos 200 anos que se seguiram). Ela vai estabelecer um formato decisivo na constituição da “geo-grafia” ocidental moderna, enquanto um discurso do mundo.
Dois modos de representação geográfica vão se consagrar desde então: o cosmográfico de Ptolomeu, privilegiando a representação gráfica do mundo, e o chorográfico de Estrabão, enfatizando a representação textual do mundo habitado, o ecúmeno.


Segundo o geógrafo italiano Franco Farinelli, desde a origem, dois eixos ortogonais estruturam o pensamento geográfico: o eixo horizontal que pode ser considerado como a dimensão epistemológica, própria ao conhecimento; e, o eixo vertical que seria a dimensão metodológica, inerente aos meios constitutivos e expositivos.

Sobre o eixo horizontal, a Razão se reveste de Lógica, de um lado do eixo, em aparente oposição ao Mito, do outro lado do eixo, o "imaginal". Sobre o eixo vertical, o Discurso, o Logos, se reveste de mapas (o iconográfico), em um lado do eixo, e parece se opôr, embora sobre o mesmo eixo, ao Texto (a tecedura literária), sua vestimenta descritiva mais comum.

Horizontalmente, de um lado, a visão mítica prefigura a significação própria do "ser" humano em termos Geo (terra) + grafia (traço descritivo), e do lado oposto, a abstração imposta pela racionalidade lógica impõe uma visão utilitarista, um modelo geográfico condizente com a pretensão de nos tornarmos “mestres e possuidores da Natureza”. Ortogonalmente, sobre o outro eixo, o discurso textual prefigura a expressão do Logos (Verbo, Sentido), e se coloca em oposição ao discurso iconográfico, o mapa, a carta, como expressão estética do Imaginário.

Adaptação da idéia de Farinelli [apud Torricelli, 1990]

Figura - Adaptação da ideia de Farinelli (apud Torricelli, 1990)

Segundo Farinelli, a Geografia contemporânea “colonizou” o discurso textual, através do discurso iconográfico. E, para demonstrar sua tese, ele utiliza uma imagem tirada da interpretação do fragmento de Phérécide (filosofia pré-socrática do século VIII-VII AC), onde o mapa se apresenta como um “véu” jogado sobre o mundo (a Terra enquanto valor humano). Um véu sobre o qual está “bordado” o desenho da Terra, fixando assim, de certa maneira nossa forma de pensar o mundo.

O velamento significa, com efeito, a passagem entre a representação da Terra (enquanto esferóide projetado sobre o papel) e o mundo (ontológico, próprio ao homem): ele se constitui enquanto “nível inviolável”, fazendo identificar o mapa à realidade mesmo (a Terra desenhada se torna o mundo real). Se o mito utiliza modelos sociais, a carta dissimula todo modelo de interpretação, pois ela se constitui como imagem objetivante da realidade geográfica. (Torricelli, 1990, p. 81)

Se tomarmos a maior parte das cartas atuais, considerando seu papel insinuante na prática geográfica, é fácil reconhecer que sua inserção nos discursos textuais se dá como se, de fato, se tratassem de metáforas do mundo e das relações que elas supõem pôr em cena. Em outros termos, as cartas, especialmente as temáticas, inseridas em apoio ou em ilustração de um texto, se impõem como figuras de retórica, literalmente.

Como metáfora do mundo, a carta não deve ser considerada apenas como imagem, mas como uma mensagem especial que utiliza uma linguagem capaz de operar uma transposição de sentido. “Toda carta temática em geografia humana opera sobre uma dupla linguagem: supõe-se que ela põe em evidência relações sócio-territoriais, próprias ao homem, através de relações geométricas, próprias as formas físicas. A carta temática é portanto um modelo muito particular, que utiliza a linguagem das formas espaciais para descrever as formas sociais.” (Torricelli, 1990, p. 82)

Entre a imagem de uma paisagem, por exemplo retratada por uma pintura, e a mesma imagem, retratada por uma carta, há uma mudança de perspectiva, em que se passa de uma visão horizontal, natural ao “comum dos mortais”, para uma visão vertical, privilegiada e incomum. Como afirma Raffestin, citado por Torricelli, a carta é uma “revolução do olhar”.

Da perspectiva zenital, própria da carta, o mundo se reduz a uma Flatland, as relações entre as coisas mudam, especialmente ao adotar uma associação de tipo geométrico, em um espaço euclidiano, onde um novo conjunto de relações opera sobre a distribuição dos objetos sobre a superfície plana da carta. Assim sendo, a carta se apresenta desde sua origem como uma imagem para sonhar e, ao mesmo tempo, um instrumento para dominar, porém de caráter reducionista e determinista.

Compreende-se esta afirmação diante de qualquer carta topográfica, uma eventual imagem de terras distantes, ao mesmo tempo que um instrumento indispensável para o reconhecimento e conquista de terrenos. Como modelo das forma físicas do solo, a carta topográfica é capaz de amarrar objetos geográficos sobre o terreno com suas representações sobre uma carta plana, segundo uma escala e uma projeção dadas.

A carta temática, por outro lado, apresenta estruturas que não são geralmente diretamente visíveis na paisagem, mas apenas imagináveis, ou visualizáveis, de acordo com Raffestin. Ou seja, a carta temática representa formas distintas das que nos defrontamos sobre a superfície terrestre, se constituindo em um modelo muito mais abstrato, e portanto de difícil verificação. Esta talvez seja a razão principal, pela qual a carta temática é sempre uma metáfora do mundo: não somente do mundo representado, mas também, e essencialmente do mundo que a concebeu.

Do Mito ao Mapa, e do Mapa à Lógica, ou seja, percorrendo os quadrantes superiores da Figura 10, da esquerda para a direita, identificamos um movimento onde um modelo de interpretação que faça uso da imaginação cede lugar a um modelo de interpretação de maior racionalidade, na leitura geográfica. Assim sendo, o eixo vertical Mapa-Texto, onde se situam todas as formas discursivas, iconográficas e textuais, se situando a meio caminho entre o Mito e a Lógica, no eixo horizontal, se estabelece como um vetor discursivo capaz de equilibrar as duas tendências da Razão: a abstração da lógica e a concretude do mundo da vida. Isto através de um discurso geográfico que tanto valoriza a imagem, ou a Imago Mundi (Expressão comumente utilizada até o século XVIII para se referir aos mapas geográficos.), enquanto fruto da imaginação, ao mesmo tempo, metafórico e racionalista, da realidade geográfica, quanto valoriza o texto e o poder da retórica, como complemento indispensável.