Japiassu: História das Ciências

Excertos de Hilton Japiassu, «A Revolução Científica Moderna»

Diferentemente da ciência, que é ciência de um objeto que não é história, a história das ciências é a história de um objeto que é uma história. Neste sentido, ela mantém uma relação direta com a filosofia. Porque a história das ciências é, segundo as expressões de Bachelard e de Canguilhem, “um tecido de juízos implícitos sobre o valor dos pensamentos e das descobertas científicos” No domínio da ciência, menos ainda do que no da filosofia, o “historiador” não tem o direito de limitar-se a uma narração pretensamente objetiva nem tampouco a ficar preso a uma simples descrição cronológica. A função e o sentido de uma história das ciências precisam estar referidos ao “modelo da escola ou do tribunal, de uma instituição ou de um lugar onde se possa emitir juízos sobre o passado do saber, sobre o saber do passado”. Por isso, a história das ciências está ligada a uma consciência que poderíamos chamar de “panhistoricidade” na qual devem ser levados em conta, não somente os discursos, mas as “idealidades” e, mesmo, os referentes. Neste sentido, só se torna eficaz com a condição de vincular-se à consciência da historicidade, não somente da própria ciência (“só há história da racionalidade”, diz Derrida), mas do objeto da ciência. A este respeito, Michel Serres é mais radical que Canguilhem: “Se os objetos do céu pareciam a nossos antecessores tão estáveis e puros quanto as idealidades do pensamento teórico, doravante sabemos que o rigor e a pureza estão em devir ao mesmo título que as estrelas que nascem, envelhecem e morrem. A teoria é uma história, a pureza possui um tempo próprio, como a cosmologia tem, doravante, sua cosmogonia”.

Sabemos que a história das “mentalidades”, das “ideias”, das “atitudes” ou, simplesmente, do “pensamento” versa sobre fenômenos culturais, vale dizer, coletivos. Sendo assim, a filosofia não dependeria dessa história. No entanto, há uma historicidade da filosofia, historicidade específica, pensada e feita pelos próprios filósofos. Mas esta história não consiste numa sucessão de teses dispostas segundo a ordem cronológica de sua formulação. O que ela tenta fazer é descrever, em cada obra, os percursos segundo os quais os autores pensaram estabelecer essas teses, ou seja, a ordem de suas razões. Todavia, posto que a filosofia pretende ser uma escola de vida, e não uma escolástica desencarnada, precisa “morder” a realidade, porque deve estar consciente de que os problemas são mais importantes do que os autores. A história da filosofia constitui, no interior de certos limites, um meio excelente, nunca um fim. Para evitarmos o irrealismo, talvez fosse interessante não nos esquecer dessa sabedoria ‘primum vivere, deinde philosophare, denique narrare historiam philosophiae.’ Evidentemente, para sabermos o que os filósofos quiseram dizer, precisamos saber como e em que condições eles conseguiram estabelecer o que quiseram dizer, numa palavra, as condições objetivas em que seu saber foi produzido. Porque a filosofia não pode separar-se de sua história, de seu modo de produzir filosofia. Suas “verdades” não são intemporais, subsistindo fora das condições reais que as engendraram, fora dos esforços sucessivos para sua aquisição. Diferentemente das chamadas ciências positivas, ela não admite verdades atualmente consideradas como adquiridas. Para ela, a historicidade nunca é um acidente exterior. Constitui seu elemento essencial e constitutivo. E por isso que a história da filosofia mantém uma relação muito estreita com a história das ciências, mas estreita do que com a história e com a ciência propriamente ditas. Porque ela é um conjunto de juízos sobre o valor das descobertas científicas em suas condições sócios-histórias bem precisas.

Koyré tinha plena consciência, como observa G. Jorland (La science dans la philosophie, Gallimard, 1981, p. 71s), de que há várias maneiras de se fazer a história das ciências: a) pode ser apresentada como uma cronologia das descobertas, das vitórias da razão sobre a natureza ou, ao contrário, como um “graveyard of forgotten theories”, como uma história dos erros humanos; b) mas também pode ser vinculada à história da técnica, de evolução social, da luta de classes, na medida em que a ciência moderna constituiu uma vitória da burguesia sobre o mundo feudal. Mas ele não aceita nenhuma dessas duas possibilidades: a primeira só faz sentido quando se investe a história de uma lógica dos resultados que a normalisa, que a retifica com finalidade apologética; quanto à segunda, não leva em conta o papel fundamental exercido pelas matemáticas e pela astronomia, muito mais voltadas para o interesse teórico da estrutura do universo. Seu modo de praticar a história das ciências é primordialmente filosófico: busca descobrir os processos do pensamento em direção à verdade. Não está preocupado em explicar, de forma causal, a emergência do conhecimento científico, mas em compreender, de modo “empático”, as atitudes dos criadores da ciência moderna, vale dizer, adotando uma disposição intelectual consistindo em transportar-se, por intuição, no interior mesmo de seu pensamento a fim de elucidar suas motivações e de compreender sua estrutura e seu desenvolvimento. Prefere detectar os motivos do que as causas. As causas agem, determinam e necessitam: pertencem à natureza. Quanto aos motivos, não agem e nem mesmo são reais. As causas destroem a liberdade, diz Koyré, enquanto os motivos a preservam: a ação motivada escapa ao encadeamento das causas da natureza. O homem explica por causas naturais ou sociais, mas compreende por causas intelectuais e imanentes, quer dizer, por motivações. E desta forma que o historiador precisa re-representar o passado.