Paolo Rossi (Ciência Moderna) – Galileu

Todavia, nas páginas do Saggiatore se encontram duas das mais célebres doutrinas filosóficas de Galilei. A primeira tem por base uma série de considerações relativas à proposição que afirma “ser o movimento a causa do calor”. Antes de mais nada, Galilei rejeita a opinião que considera o calor um atributo ou qualidade “residente realmente na matéria”, O conceito de matéria ou substância corpórea implica os conceitos de figura, de relação com outros corpos, de existência em um determinado tempo e lugar, de estaticidade ou de movimento e de contato ou não com outro corpo. Mas a cor, o som, o cheiro, o sabor não são noções que acompanham necessariamente o conceito de corpo. Se não fôssemos dotados de sentidos, a razão e a imaginação humana jamais chegariam a suspeitar da existência de tais propriedades. Os sons, as cores, os cheiros e os sabores são pensados como inerentes aos corpos, como qualidades objetivas; na realidade, porém, são apenas “nomes”. De fato, uma vez “removido o corpo animado e sensitivo, do calor não resta nada mais do que um simples vocábulo”. E Galilei não fica só nisso. Ele exprime a sua “inclinação a acreditar” que a causa que produz em nós a sensação de calor “seja uma multidão de corpúsculos mínimos representados de forma indeterminada, movidos com extrema velocidade”, sendo o seu contato com o nosso corpo “percebido por nós, mediante um efeito que nós chamamos de calor”. Mas, além da figura e da multidão daqueles corpúsculos, bem como do seu movimento, penetração e contato, não há qualquer outra qualidade relacionada com o fogo.

O mundo real, portanto, é tecido por dados quantitativos e mensuráveis, de espaço e de “corpúsculos mínimos” que se movem no espaço. O saber científico é capaz de distinguir o que no mundo é objetivo e real e o que, ao contrário, é subjetivo e relativo à percepção dos sentidos. Como diria Mersenne na obra Verité cies sciences. entre o universo da física e o universo da experiência sensível, na era moderna, abriu-se um abismo muito mais profundo do que o abismo imaginado pelas filosofias cépticas.

Ao longo de toda a discussão sobre as qualidades primárias e secundárias, Galilei evita recorrer ao termo átomo. Usa as expressões “corpúsculos mínimos”, “mínimos ígneos”, “mínimos de fogo”, “mínimos quânti-cos”. Em todo o caso se trata das partes mais pequenas de uma determinada substância (o fogo), não dos componentes últimos da matéria. Ao terminar o Saggiatore Galilei fazia referência a “átomos realmente indivisíveis”. As passagens em que Galilei faz referência às posições atomistas sustentadas por Demócrito são peculiarmente importantes. Na primeira jornada dos Discor-si Galilei voltaria ao assunto a propósito do fenômeno da coesão. Simplício acenaria com desprezo “àquele certo filósofo antigo”, aconselhando Salviati a não tocar em semelhantes teclas “desafinadas com a mente bem forjada e bem organizada de Vossa Senhoria, não somente religiosa e piedosa, mas católica e santa”.

A referência à doutrina dos “corpúsculos” contida no Saggiatore não escapara à atenção vigilante do padre Grassi. Na sua réplica ao Saggiatore publicada em 1626 com o título Ratio ponderum Librae et Simbellae, ele pusera em destaque a aproximação entre as teses de Galilei e as teses de Epicuro, que negava a existência de Deus e da Providência. A redução das qualidades sensíveis ao nível da subjetividade leva a um conflito aberto com o dogma da Eucaristia porque (e é uma objeção que também Descartes teria de enfrentar) quando as substâncias do pão e do vinho são transubstanciadas no corpo e no sangue de Jesus Cristo estão presentes nelas também as aparências externas: a cor, o cheiro e o gosto. Para Galilei se trata de “nomes” e, para os nomes, não seria necessária a intervenção milagrosa de Deus.

A segunda doutrina que ficou célebre, contida no Saggiatore, exprime a convicção de Galilei de que a natureza, apesar de ser “surda e inexorável aos nossos vãos desejos” e apesar de produzir os seus efeitos “mediante formas impensáveis por nós”, traz no seu interior uma ordem e uma estrutura harmoniosa, do tipo geométrico: “a filosofia está escrita neste grandíssimo livro que está continuamente aberto diante dos nossos olhos (refiro-me ao universo), mas não se pode entender sem antes aprender a entender a língua e conhecer os caracteres, nos quais está escrito. Ele está escrito em linguagem matemática, e os caracteres são triângulos, círculos e outras figuras geométricas, de maneira que sem tais meios é humanamente impossível entender qualquer palavra; sem tais recursos é como caminhar inutilmente por um labirinto escuro” (Galilei, 1890-1909: VI, 232). ?

Os caracteres em que está escrito o livro da natureza são diferentes daqueles do nosso alfabeto, e nem todos são capazes de ler este livro, Nesta premissa Galilei baseia a firmíssima e obstinada convicção de toda a sua vida: a ciência não se limita a formular hipóteses e a “investigar os fenômenos”, mas é capaz de dizer algo verdadeiro a respeito da constituição das partes do universo in rerum natura e de representar a estrutura física do mundo. Na página do Saggiatore que vem logo depois daquela que contém a célebre frase citada anteriormente, Galilei afirma desejar, tal como Sêneca, conhecer a “verdadeira constituição do universo, qualificando este seu desejo como “uma grande indagação, muito ansiada por mim”.

O sentido destas afirmações foi bem entendido por aqueles que consideravam ímpia e perigosa a ideia de um conhecimento matemático baseado na estrutura objetiva do mundo e, por conseguinte, capaz de igualar de algum modo o conhecimento divino. A posição do cardeal Maffeo Barberini (1568-1644, a partir de 1623 Papa Urbano VIII) a respeito deste ponto é muito clara: considerando que para todo efeito natural é possível dar uma explicação diferente daquela que a nós parece a melhor, toda teoria deve proceder no nível das hipóteses e permanecer neste nível. No Dialogo, justamente em oposição a esta tese, Galilei sustentaria a possibilidade, mediante o conhecimento matemático, de igualar o conhecimento divino. Com um raciocínio que na opinião do aristotélico Simplício parece “muito ousado”, Salviati afirma: “extensive, quer dizer, quanto à multidão das coisas inteligíveis, que são infinitas, a compreensão humana é como nula […], mas tomando o entender intensive, na medida em que tal termo implica intensivamente, isto é perfeitamente alguma proposição, afirmo que o intelecto humano compreende algumas coisas tão perfeitamente, e tem certeza tão absoluta, quanta certeza tem a respeito da própria natureza; e tal certeza pode ser alcançada pelas ciências matemáticas puras, isto é, a geometria e a aritmética, das quais o intelecto divino conhece mais infinitas proposições, conhecendo-as em sua totalidade. Todavia, a compreensão daquelas poucas realidades que são entendidas pelo intelecto humano, é igual ao conhecimento divino na certeza objetiva” (ibid: VII, 128-29).