CORBISIER, R. Enciclopédia Filosófica. Petrópolis: Editora Vozes, 1974.
Definir o tempo a priori é defini-lo de acordo com determinada posição filosófica ou teoria científica, pois embora a realidade a que faz referência seja a mesma, sua noção tem variado ao longo da história, acompanhando a evolução da filosofia e o progresso das ciências particulares. À pergunta pelo tempo têm sido dadas várias respostas que correspondem às cosmovisões características dos grandes ciclos da cultura. Na história do pensamento ocidental, é possível distinguir, a propósito, três concepções distintas que correspondem ao mundo grego, ao cristianismo e ao mundo moderno.
Definir o tempo a priori é defini-lo de acordo com determinada posição filosófica ou teoria científica, pois embora a realidade a que faz referência seja a mesma, sua noção tem variado ao longo da história, acompanhando a evolução da filosofia e o progresso das ciências particulares. À pergunta pelo tempo têm sido dadas várias respostas que correspondem às cosmovisões características dos grandes ciclos da cultura. Na história do pensamento ocidental, é possível distinguir, a propósito, três concepções distintas que correspondem ao mundo grego, ao cristianismo e ao mundo moderno.
Concepção grega do tempo. A reflexão sobre o tempo e o espaço se inicia no século VI antes de Cristo, na Escola de Elea, que, afirmando a unidade e a imobilidade do ser, procurava mostrar as contradições implícitas na multiplicidade e no movimento. De acordo com os argumentos de Zenão, o movimento é impossível porque é contraditório, envolvendo o seguinte dilema: ou a extensão é infinitamente divisível, hipótese em que o móvel levaria um tempo infinito para percorrer o número infinito de estações intermediárias que resultam de sua divisão; ou então, o espaço não é infinitamente divisível, interrompendo-se a divisão no indivisível, no ponto; ora, composto de pontos indivisíveis, o espaço não existe, e como o espaço é a condição do movimento, e o movimento a condição do tempo, movimento e tempo são irracionais e, portanto, irreais. Levando às últimas consequências o princípio de identidade e de não-contradição, e as exigências da razão lógico-formal, contestam os eleatas a validade do conhecimento sensível, sustentando que a multiplicidade e o movimento, o espaço e o tempo, porque contraditórios e irracionais, não passam de ilusões dos sentidos.
No mesmo século, Heráclito de Éfeso sustentou, em contraposição aos eleatas, a tese da multiplicidade e da mobilidade do ser, afirmando a estrutura movediça e contraditória da realidade e do logos “de acordo com o qual todas as coisas se produzem”. Segundo o efesiano, “não nos podemos banhar duas vezes no mesmo rio”, pois tudo corre e “a guerra é mãe e rainha de todas as coisas”. A contradição, o conflito, a luta, são reconhecidos como essência do vir-a-ser, de devenir, pois “é uma mesma coisa ser vivo ou ser morto, desperto ou adormecido, jovem e velho, essas coisas se transformam umas nas outras e são de novo transformadas”. Além de razão das coisas, o logos heraclítico é o fogo que as ilumina e nos permite vê-las, “sentido” do real e pensamento, além de sabedoria, pois “ser sábio consiste em saber que o pensamento governa todas as coisas”. Compreendendo a natureza como processo, a mobilidade e o tempo como estofo da realidade, o absoluto como vir-a-ser e unificação dos contrários, Heráclito, segundo Hegel, formulou, pela primeira vez, a ideia filosófica em sua forma especulativa.
No século seguinte, Demócrito de Abdera formula a teoria atomista, que é uma tentativa de conciliação entre o eleatismo e o heracliteísmo. Admitindo a plenitude do ser, que chama de átomo, e reconhecendo a impossibilidade de negar o movimento, admite também o espaço vazio, condição do movimento. O ser parmenídico, uno e imóvel, é dividido em um número infinito de átomos, partículas indivisíveis, que se movem no vazio e de cuja união ou separação resultam todas as coisas. Os átomos e o vazio são eternos e o movimento sempre existiu. Discípulo de Demócrito, Epicuro esboça a tese que, dois milênios e meio mais tarde, deveria opor a concepção einsteiniana à concepção newtoniana do tempo. Ao expor a doutrina de Epicuro, no De natura rerum, Lucrécio escreve o seguinte: “O tempo não existe por si mesmo, mas apenas pelos objetos sensíveis, de que resulta a noção de passado, presente e futuro. Não se pode conceber o tempo em si e independentemente do movimento e do repouso das coisas”.
Tentando também harmonizar o eleatismo com o heracliteísmo, e interpretando de modo pessoal a teoria socrática das essências, Platão, sem negar o movimento e o vir-a-ser, acredita que as essências se dissolveriam na mobilidade se dela não fossem, de certo modo, independentes. Tal é o sentido da teoria das ideias, eternas e imutáveis, modelos e paradigmas dos objetos sensíveis, efêmeros e contingentes. No Timeu, Platão sustenta que o tempo é uma imagem ou “imitação móvel da eternidade”. Ligado ao movimento e à mudança, o tempo não existe para as coisas eternas, que “não comportam nenhum dos acidentes que o vir-a-ser acarreta ao que se move na ordem sensível, pois esses acidentes são variedades do Tempo, que imita a eternidade e se desenrola em círculo, de acordo com o número”. As coisas que duram têm, cada uma, um tempo próprio, como acontece com os astros, cujos tempos são medidos pelos tempos referenciais do sol e da lua. Há, porém, um tempo comum, do “grande ano” que domina todos os outros e permite reduzi-los à mesma medida. 0 tempo divisível, que se deixa numerar, aparece com o mundo e, se o mundo devesse perecer, o tempo também pereceria.
Na Física, Aristóteles faz um estude crítico do problema do tempo, em sua relação com o movimento, a mudança, o número e a medida. Observa, inicialmente, que o tempo foi e não é mais e vai sei e ainda não é. “As partes do tempo são umas passadas e outras futuras, nenhuma existe e, no entanto, o tempo é uma coisa divisível”. O instante, porém, não pode sei parte do tempo, inclusive porque é um limite e não se pode admitir um tempo finito ou limitado. O tempo parece ser o movimento e a mudança. Todavia, diz Aristóteles, o movimento e a mudança estão unicamente nas coisas, ao passo que o tempo está em toda parte e em todas as coisas igualmente. O movimento e a mudança são mais rápidos ou mais lentos, o que não acontece com o tempo, que define a rapidez e a lentidão. Não há tempo sem movimente e, no entanto, o tempo não é movimento mas alguma coisa do movimento. Conhece-se o tempo quando se determina o movimento, utilizando, nessa determinação, o anterior e o posterior.
O tempo é, portanto, “o número do movimento de acordo com o anterior e posterior, sendo contínuo, pois pertence um contínuo”. O tempo não é o movimento, a não ser enquanto o movimento com porta um número, ou é mensurável. O tempo, continua o Estagirita, é o numerado não o meio de numerar, pois o meio de numerar e a coisa numerada são distintos O tempo é o número do movimento contínuo e não deste ou daquele movimente pois qualquer tempo é sempre o mesmo, desde que tomado simultaneamente. Assim, em relação a movimentos que se realizam simultaneamente, o tempo é o mesmo, o movimento podendo ser rápido ou não. Os movimentos são diferentes e separados, ao passo que o tempo é sempre o mesmo, pois o número é igual e simultâneo, em relação a qualquer movimento ou mudança.
Discípulo de Platão, Plotino, já no século IV depois de Cristo, também considera o tempo uma imagem da eternidade, contestando as teorias que, como as de Aristóteles, se fundam na observação do mundo físico (mundo sublunar, da geração e da corrupção), sem levar em conta as relações do tempo com a alma e a eternidade. Para esses filósofos antigos, o tempo se confunde com o tempo cronológico (kronos), com a sucessão regular e periódica dos dias e das noites, dos meses e dos anos. Inseparável do movimento diurno, confunde-se com o movimento circular da esfera e com a própria esfera. A concepção aristotélica do tempo, como número e medida do movimento, incluía-se nessa cosmovisão, embora Aristóteles definisse o tempo em geral a “essência” do tempo e não apenas o que se refere ao movimento regular do céu.
Criticando o peripatetismo, Plotino procura mostrar que sua definição do tempo é muito discutível se o tempo não for apenas a medida do movimento regular do céu. O dilema é o seguinte: ou o número do movimento está tão pouco ligado ao movimento quanto o número dez, por exemplo, aos objetos que numera, hipótese em que é apenas um número que não merece ser chamado de tempo; ou então, o número é inseparável do movimento que mede porque cresce e progride com ele, caso em que é impossível distinguir o tempo do movimento por ele medido. A distinção só é possível se a medida for exterior ao movimento, hipótese em que o número que a representa não passa de um número que nada contém do tempo. A medida apreende apenas números e quando muito o espaço. Aprofundando a crítica, Plotino indaga se a mensurabilidade é condição de existência do tempo que, sendo infinito, não pode, em si mesmo, ser medido.
Fiel à inspiração platônica, nega a ligação do tempo com o mundo físico, e encontra seu fundamento na alma. O tempo é um aspecto da “procissão” da alma, produzindo-se quando a alma se afasta da inteligência. Seria destruído e substituído pela eternidade se a alma se unisse ao inteligível. “A alma, escreve Plotino, fez o mundo sensível à imagem do mundo inteligível; o fez móvel, não do movimento inteligível, mas de um movimento semelhante a este e que aspira a ser a sua imagem; a princípio, tornou-se ela própria temporal, produzindo o tempo em lugar da eternidade; em seguida, submeteu ao tempo o mundo por ela engendrado, e o pôs todo no tempo, no qual encerrou todo o seu desenvolvimento”. Assim como o mundo se move na alma, também se move no tempo que pertence a essa alma. O universo é produzido em um ato que se confunde com o tempo e, por isso, está no tempo. O tempo está em toda parte porque a alma é onipresente no mundo, assim como a alma do homem está em todas as partes do seu corpo.
Com exceção dos atomistas que concebiam o tempo como relativo, os filósofos gregos o entendiam como absoluto, de acordo com a concepção de Aristóteles. Além de absoluto, quadro invariável e fixo do movimento, o tempo era também imaginado como circular e cíclico, à imagem do dia e da noite, e das estações do ano. Segundo Platão, “o tempo que imita a eternidade se desenrola em círculo”, em um incessante e contínuo desaparecer e reaparecer, extinguir-se e renascer. Antes de Platão, e interpretando os ensinamentos de Pitágoras, Porfírio dizia que, de acordo com certos períodos, os seres recomeçam, assim como o próprio mundo, a sua vida anterior. A ideia do “eterno retorno”, de inspiração pitagórica, seria assim a síntese da concepção grega em relação ao tempo.
Concepção cristã do tempo. Embora seja uma religião e não uma filosofia, o cristianismo trouxe duas ideias, estranhas à filosofia grega e que deveriam exercer profunda influência em todo o pensamento posterior. A ideia de um Deus transcendente, único e pessoal, criador e legislador do universo, e a ideia de criação do mundo ex-nihilo, a partir do nada. Na perspectiva cristã, o tempo deixa de ser a roda que sempre reconduz ao mesmo lugar, para tornar-se a propedêutica da eternidade. O homem, criado por Deus à sua imagem e semelhança, foi precipitado no tempo e na morte em consequência do pecado, que é uma ruptura com Deus. Pelo Cristo, porém, que é o mediador, pode restabelecer a ligação com Deus, e fazer da sua vida no tempo, uma preparação para a vida eterna. O tempo é apenas um caminho que deve conduzir o homem fora e além do tempo.
Mas que é o tempo, que traz a vida e traz a morte, e, para os cristãos, a imortalidade e a ressurreição dos corpos? Inspirando-se em Platão e em Plotino, Santo Agostinho formula com extraordinária lucidez o problema, ou melhor, o enigma do tempo. Quid est ergo tempus, indaga, e observa: “se ninguém me pergunta eu sei, se me perguntam querendo que explique, não sei”. Sabe, no entanto, que se nada passasse, não haveria passado; se nada adviesse não haveria futuro e, se nada fosse, não haveria presente. Mas o passado e o futuro como podem ser, se o passado não é mais e o futuro ainda não é? O próprio presente, continua o santo, se fosse sempre o presente, sem perder-se no passado, não seria mais tempo, seria eternidade. Logo, se, para ser tempo, o presente deve passar, deve tornar-se passado, deixando de ser presente, como se pode dizer que é?
Pode-se dizer que o tempo é porque se encaminha para o não-ser. Refletindo ainda sobre o presente, Santo Agostinho observa que, reduzido ao ano corrente, o presente não é presente enquanto ano, pois o ano se compõe de doze meses e cada mês, seja qual for, está presente apenas enquanto está em curso, pois os outros meses ou são passados ou são futuros, por-vir. E o mês em curso não é presente enquanto mês, mas apenas em um de seus dias; se for o primeiro, todos os outros serão futuros, se for o último, todos os outros serão passados; se for um dia qualquer, estará entre os passados e os futuros. Eis a que se reduz o tempo presente. Mas mesmo o dia, que se compõe de vinte e quatro horas, não está todo presente; em relação à primeira hora, as demais são futuro, em relação à última são passado, o mesmo ocorrendo em relação às horas intermediárias. A própria hora não é presente, pois se compõe de minutos, “partículas fugidias”, em relação às quais as anteriores são passado e as posteriores futuro.
O presente seria, pois, o instante, o ponto indivisível do tempo. Ora, diz Santo Agostinho, “esse único ponto, que se pode chamar de presente, é arrastado tão rapidamente do futuro ao passado, que não tem nenhuma extensão de duração; pois, se tivesse alguma extensão, dividir-se-ia em passado e futuro, mas o presente é sem extensão”. Embora não o mencione, Santo Agostinho procede em relação ao tempo como Zenão de Elea em relação ao espaço, no famoso argumento da dicotomia. O tempo é contraditório, ou irracional, porque, ou é infinitamente divisível, hipótese absurda que equivaleria a incluir o tempo infinito no finito, ou então, indivisível, porque se compõe de instantes indivisíveis, hipótese também absurda porque, se o instante não passasse, como se observou, não seria tempo mas eternidade.
Concluindo sua análise, observa Santo Agostinho que nem o futuro nem o passado são. É, pois, impropriamente que se fala em três tempos, pois, a rigor, se deveria falar no presente do passado, no presente do presente e no presente do futuro. Esses três modos do tempo “estão em nossa alma”, como pretendia Plotino. O presente do passado é a memória, o presente do presente é a visão (percepção) direta, e o presente do futuro é a expectativa, a espera. “Que o futuro ainda não seja, quem o negaria? A espera do futuro, no entanto, já está no espírito. Que o passado não seja mais, quem duvida? Mas a lembrança do passado ainda está no espírito. Que o presente seja inextenso, sendo apenas um ponto fugidio, quem o contestaria? Mas o que dura é a atenção pela qual o tempo se encaminha para o não ser mais, aquilo que pela atenção vai passar”.
Ao proferir um discurso, a atenção se volta para o seu conjunto. A medida que se fala, a atenção se concentra em duas direções: é memória em relação ao que se disse, é expectativa quanto ao que se vai dizer. A atenção, porém, fica presente, a atenção por meio da qual o que ainda não era se torna o que não é mais. E, conclui Santo Agostinho, à medida que esse movimento se desenvolve, a memória se enriquece de tudo o que é perdido pela atenção, até o momento em que a espera se esgota completamente, a ação se achando concluída e tendo passado toda para a memória. O que ocorre com o discurso também acontece com as palavras que o compõem, e com as sílabas das palavras. E, mais ainda, com a vida toda do homem, da qual os atos são apenas partes; e, enfim, com a história de todas as gerações humanas, das quais cada vida individual é apenas uma parte.
A meditação de Santo Agostinho sobre o tempo, que antecipa, quanto ao essencial, a reflexão de Bergson e de Husserl, assim como a obra romanesca de Proust, mereceu do próprio Husserl o seguinte comentário: “Os capítulos 13 e 28, do XI livro das Confissões, devem ainda hoje ser estudados a fundo por quem se ocupa com o problema do tempo. Pois, nessa matéria, a época moderna, tão orgulhosa do seu saber, nada produziu de muito amplo e que vá muito além desse grande pensador, que se debateu seriamente com a dificuldade”.
Os filósofos e teólogos medievais não trouxeram contribuições significativas à elucidação da ideia de tempo. Santo Tomás, por exemplo, que é considerado o maior teólogo da idade Média, limitou-se a reiterar, quanto ao essencial, as teses de Aristóteles a respeito do espaço e do tempo.
Noção de tempo na ciência e na filosofia moderna. Com Copérnico, Galileu, Kepler e Newton, a ciência moderna se constitui na perspectiva anti-historicista do racionalismo cartesiano. Nessa perspectiva, a realidade se divide em res extensa e res cogitans que, coincidindo uma com a outra, tornam possível a ciência da natureza como ciência físico-matemática. A natureza é concebida à semelhança da máquina, ou de um conjunto de máquinas, cuja estrutura e cujo funcionamento podem ser explicados mecanicamente. As descobertas e invenções científicas, propiciadas pela fundação e pelo progresso da físico-matemática, favoreceram a eclosão do naturalismo anti-historicista que caracterizou o pensamento renascentista e a primeira fase do pensamento moderno. A descoberta da história, ou da realidade como tempo, seria posterior à descoberta da natureza, ou da realidade como espaço.
Embora não pretenda mais conhecer as causas das coisas, mas apenas determinar como se processam, os fundadores e principais representantes da ciência moderna conservam a mesma concepção do tempo, formulada por Aristóteles no século IV antes de Cristo. A ciência continua a fundar-se na hipótese de que o espaço e o tempo são absolutos, admitindo-se que um intervalo de tempo, ou de espaço, é sempre o mesmo, para qualquer observador, e sejam quais forem as condições ou o ponto de vista em que se encontre. No seu famoso Escolio, Newton escreve o seguinte: “O tempo absoluto, verdadeiro e matemático, tomado em si mesmo, e sem relação com nenhum objeto exterior, flui uniformemente por sua própria natureza… E o espaço absoluto, independentemente da relação com objetos exteriores, permanece sempre imutável e imóvel”. Tal concepção, assim resumida, deveria prevalecer na ciência natural até o advento, três séculos depois, da relatividade einsteiniana.
Immanuel Kant pretendia ter feito, no campo da filosofia, uma revolução comparável à de Copérnico no campo da astronomia, ao descobrir que não é o sujeito que gravita em torno do objeto, mas, ao contrário, o objeto que gravita em torno do sujeito. Na perspectiva kantiana, do idealismo subjetivo, o conhecimento deixa de ser o reflexo ou a representação da realidade na consciência, para tornar-se a construção do objeto pelo sujeito. Conhecer não é reproduzir ou representar o objeto tal qual é em si mesmo, mas transformá-lo, enquadrando-o nas formas a priori da sensibilidade e nas categorias igualmente a priori do entendimento. As formas a priori, que tornam possível a física e a matemática, são o espaço e o tempo.
O tempo é subjetivo, anterior à experiência, porque é possível concebê-lo sem acontecimentos, não sendo possível conceber os acontecimentos, interiores e exteriores, fora do tempo, que, por isso mesmo, é a forma a priori da sensibilidade externa e interna. Essa característica do tempo explica a compenetração da geometria e da aritmética. A geometria analítica, cartesiana, permite reduzir as figuras e equações e vice-versa. O cálculo infinitesimal, leibniziano, arremata essa compenetração, definindo a lei de desenvolvimento de um ponto em qualquer direção do espaço. A matemática é, pois, um conjunto de leis a priori que tornam a experiência possível e com ela coincidem.
Na Fenomenologia do Espírito, Hegel declara que se propõe fazer em relação ao tempo, à história, o que Descartes havia feito em relação ao espaço, à natureza. Hegel é, assim, o primeiro a identificar o conceito e o tempo. “Quanto ao tempo, escreve, é o próprio conceito existindo empiricamente”. O tempo a que se refere é o tempo humano ou histórico, tempo da ação, do trabalho, consciente e voluntário, que procura realizar no presente um projeto de futuro, projeto que se forma não só com a imaginação criadora, mas também com o conhecimento do passado. A realização desse tempo humano implica a negação do espaço, da matéria, da natureza, pois o tempo nega ou destrói o mundo natural, fazendo-o desaparecer no passado. Consistindo nessa “nadificação” do mundo, pressupõe o mundo, sem o qual não poderia existir. A presença ou a existência do tempo coincide, assim, com a presença do homem.
“O espírito é tempo”, diz Hegel e, como não é transcendente mas imanente ao mundo, à história, o espírito que define como tempo é o próprio espírito humano, não individual, mas coletivo, o “universal concreto”, representado pelo povo ou Estado, a humanidade na totalidade de sua existência, a rigor, a história universal. Mas qual é a estrutura da história, ou da temporalidade humana? A temporalidade é dialética, envolvendo três momentos: 1) a identidade, a tese, a natureza; 2) a negatividade, a antítese, a ação do homem, o trabalho; 3) a síntese ou totalidade, a obra, a história. A existência humana apresenta uma estrutura dialética ou histórica, porque o homem vive em função do futuro, de um projeto ou de um “fim”, cuja realização implica a negação da natureza e da própria natureza do homem, que só é humano na medida em que se cria a si próprio (pedagogia, ética, política) como se fosse uma obra.
O tempo newtoniano era, assim como o espaço, um referencial absoluto, em função do qual se determinava o movimento enquanto relação. Em 1881, a fim de verificar a realidade do éter, Michelson e Morley realizaram a famosa experiência cujos resultados exerceram decisiva influência no pensamento de Einstein. Comparando o espaço a um imóvel mar de éter, admitiram que o movimento da terra através do éter poderia ser medido como a velocidade de um navio no mar. Por meio de um aparelho chamado “interferômetro”, verificaram que a velocidade dos feixes luminosos, que deveria aumentar quando os feixes se projetam na direção do movimento da terra, permanecia invariável, qualquer que fosse sua direção. A experiência apresentava a seguinte alternativa: ou abandonar a teoria do éter ou renunciar à teoria copernicana sobre o movimento da terra, pois a experiência demonstrou que as ondas luminosas, electromagnéticas, não precisavam, para propagar-se, de um meio ou ambiente que as suporte.
Refletindo sobre essa experiência, e admitindo que a velocidade da luz não é afetada pelo movimento da terra, Einstein admite que também deve ser independente do movimento dos astros ou de qualquer sistema do universo. A simultaneidade é universal e passa a depender do movimento relativo. Se todos os observadores, ou todos os pontos de vista, são equivalentes, nenhum privilégio pode ser atribuído ao espaço, e, se a simultaneidade também varia de acordo com o movimento relativo dos observadores, deixa, também, de ter sentido a hipótese de uma sucessão temporal absoluta. Nenhum critério permite afirmar que o movimento de um sistema qualquer é aparente em relação ao de outro sistema, que, por hipótese, seria real, e nenhuma experiência prova que o espaço e o tempo são absolutos. O tempo não passa, pois, de uma forma da intuição, inseparável da consciência do sujeito. Não há, no universo, nenhum ponto de referência que permita comparações absolutas e, o que chamamos de tempo, é apenas a ordem de sucessão das coisas, umas depois das outras. Não há, portanto, um tempo absoluto, independente do que acontece na consciência que o conserva.
No livro intitulado Duração e simultaneidade, Henri Bergson critica a concepção einsteiniana do tempo, distinguindo o tempo que chama de duração, do tempo físico e matemático que, a seu ver, não é tempo propriamente, mas tempo espacializado, ou espaço. O tempo real, ou a duração, é imediatamente percebido, na intuição da vida interior que, segundo Bergson, é continuidade, escoamento, passagem, transição, que se bastam a si mesmos, não implicando nem uma coisa que se escoa, nem estados pelos quais se passaria. Essa fluidez da vida interior é, em si mesma, memória, que “prolonga o antes no depois, impedindo-os de ser puros instantes, aparecendo e desaparecendo em um presente que renasceria sem cessar”. Não fosse essa consciência da duração, que se confunde com a memória, e não se teria noção alguma do tempo, pois não é possível conceber uma realidade que dura sem nela introduzir a consciência, a memória.
Caracterizando-se pela sucessão do antes e do depois, o tempo implica uma ligação, uma “ponte entre os dois”, sendo impossível conceber essa ligação sem a memória que é, precisamente, a consciência de tal sucessão. “Sem uma memória elementar que ligue os dois instantes um ao outro, diz Bergson, haverá apenas um ou outro, um instante único, e não antes e depois, não haverá sucessão, não haverá tempo”. Esse tempo, percebido e vivido, que consiste na continuação do que não é mais no que é, não comporta medida, não é mensurável. A rigor, o que se mede, por meio do movimento, não é o tempo, mas a extensão percorrida pelo móvel, o seu rastro no espaço. Fazendo coincidir a trajetória com o trajeto e a linha descrita pelo movimento com o próprio movimento, converte-se o tempo em espaço, tornando-o então mensurável. O tempo de que se ocupam os físicos e os matemáticos é esse tempo espacializado, que não se confunde com a duração, tempo real, irredutível à medida e ao cálculo, tempo absoluto, que se identifica com a intuição do espírito pelo próprio espírito.
Edmund Husserl, em suas Lições para uma fenomenologia da consciência íntima do tempo, cujo tema é a descrição do “tempo fenomenológico”, tal como se revela à intencionalidade da consciência, não procura descrever o tempo do mundo, o tempo “coisificado”, no sentido das ciências da natureza, mas o tempo que surge, a duração emergente, considerados como dados absolutos dos quais não é possível duvidar. O tempo admitido por Husserl não é, pois, o do mundo da experiência, mas o “tempo imanente”, que coincide com o curso da consciência. O que procura elucidar são as condições a priori do tempo, explorando a “consciência transcendental do tempo” mediante a análise de sua constituição essencial.
A exigência a priori, diz Husserl, “se funda na validade das evidências fundamentais relativas ao tempo, que devem ser apreendidas imediatamente e que se tornam evidentes a partir da apreensão intuitiva dos dados das situações temporais”. É da essência a priori do tempo ser uma continuidade de situações (temporais) e que a homogeneidade do tempo absoluto se constitua no escoamento das modificações do passado e na irrupção contínua de um “agora”, do instante criador, “ponto-original” das situações temporais em geral. Também é necessário a essa essência que a sensação, a apreensão, participem do mesmo fluxo temporal e que o tempo absoluto objetivado seja o mesmo que o tempo pertencente à sensação e à apreensão. O tempo imanente à consciência e aos seus atos intencionais é pois a “subjetividade absoluta”, condição a priori de qualquer objetivação temporal.
Em contraste com a concepção vitalista e psicológica, própria do bergsonismo e mesmo com a concepção fenomenológica e idealista de Husserl, Heidegger sustenta uma concepção existencial do tempo e da historicidade do homem. A partir da situação original, que consiste na implicação recíproca homem-mundo, Heidegger procede à “análise existencial” do Dasein (ser-aí, existência humana), procurando revelar seus elementos estruturais. Posto no mundo, o Dasein apresenta uma estrutura pro-jetiva, ou antecipadora, pois não poderia realizar seu ser sem antecipar seu poder ser. Existindo em função do projeto, cuja realização depende de sua liberdade, será essencialmente pré-ocupação, cujo “sentido ontológico” é a temporalidade.
Por que há tempo? Que é que permite a temporalização do tempo, do futuro, em primeiro lugar? A capacidade de antecipar, que permite ao Dasein aceder ao seu ser próprio. “O futuro, diz Heidegger, não significa um momento que ainda não se tornou “real”, e que só o será mais tarde, mas o processo pelo qual o Dasein chega, em seu poder-ser mais autêntico, até a si mesmo”. Esse aceder a si mesmo é um aceder à própria morte, ao que o Dasein já é, pois em si mesmo o Dasein é mortal. O futuro realiza, assim, o passado, o qual, por sua vez, não existiria sem o futuro. As fases do tempo se incluem e se excluem o que permite defini-lo como simultaneamente exterior e interior a si mesmo. O homem não é mais o seu passado, a sua infância e, no entanto, ainda é a sua infância, ainda a traz dentro de si. O passado é, pois, um passado ainda presente.
Mas que é o presente? O presente é a “presentificação”, pois, ao temporalizar-se, o Dasein torna o ente presente. “O passado-presente, escreve Heidegger, surge do futuro, de tal modo que o futuro-passado dá nascimento ao presente. Chamamos de temporalidade à unidade desse fenômeno assim estruturado, como futuro-passado-presente. É apenas enquanto determinado como temporalidade que o Dasein pode realizar seu ser total autêntico… A temporalidade se revela como o sentido da preocupação autêntica”. O tempo não é pois, segundo Heidegger, um “ente”, uma realidade objetiva, espécie de quadro vazio em que se desenrolaria a existência. O tempo é o próprio ser do Dasein que, em si mesmo, é temporalidade e temporalização. Em sua obra intitulada O Ser e o Tempo, o filósofo procura pensar o ser, cuja verdade se revela como tempo.