Ciência

A noção de ciência implica numa sucessão de graves dificuldades. Diferente da ideia grega de episteme (que traduzimos por “ciência”, mas que significa aproximadamente “conjunto de técnicas e habilidades”) e da noção escolástica de scientia, a palavra “ciência”, com o uso que dela fazemos hoje, surgiu apenas no início do século dezenove. Uma análise superficial nos divide o campo das ciências em duas grandes regiões. Uma delas, que envolve disciplinas como a matemática, a física, a química e biologias (incluindo áreas intermediárias como a físico-química, a bioquímica, a zoologia), tem reconhecidamente seu status “científico” conferido em época anterior ao surgimento do problema da noção de ciência (Gilbert, Galileu, Newton, Descartes e Leibniz, fundadores da física e da matemática modernas viveram antes do século dezenove, e se consideravam pelo menos filósofos naturais; a mesma situação ocorre com Boyle e Lavoisier, na química, ou com Harvey na biologia). A outra área, das “ciências sociais” — sociologia, psicologia, história — desenvolvidas sobretudo no século XIX, não tem o seu status “científico” tão firmemente reconhecido como o das ciências naturais (uma situação intermediária é a da economia, embora uma análise mais cuidadosa também nos leve a duvidar de seu status científico, enquadrando-a entre as “ciências” sociais) . As questões que parecem se apresentar são, (1) o que caracteriza uma ciência? (2) dessa característica, o que atribui à disciplina seu status “científico”?

Estas questões parecem estar se apoiando numa valorização indevida da noção de “ciência” como forma “aperfeiçoada” de conhecimento. O sentido desta valorização está implícita quando o status científico é conferido às “ciências naturais”, e não às “ciências sociais”: as ciências naturais são aquelas onde a formalização da linguagem mais progrediu. Este fenômeno é sintetizado na pretensão de se desenvolverem ciências sociais que atinjam o “status de rigor da física matemática”. A noção implícita de ciência conteria, como categorias fundamentais, o rigor e a formalização. No entanto, vários exemplos de dentro das ciências naturais sugerem que nem o rigor nem a formalização constituem o centro, o núcleo da contribuição científica. O fato mais notável é o surgimento da teoria da relatividade restrita em 1905. A contribuição de Einstein, do ponto de vista formal, se limitou a repetir um conjunto de equações, chamadas “transformações de Lorentz”, que o físico holandês Hendryk Lorentz vinha utilizando desde 1898. O grande avanço de Einstein não foi um avanço formal, mas sim conceituai. Einstein mostrou, em 1905, qual o significado físico das transformações de Lorentz, interpretando-as através do postulado da constância da velocidade da luz. O que significaria: a contribuição de Einstein está na parte expositiva de seu paper de 1905, e não na parte matemática (que estende um pouco as consequências das transformações de Lorentz, mas com o apoio de sua intuição a respeito) . O caso de Einstein não é único (um outro exemplo é a interpretação que o físico P.A.M. Dirac propõe para os valores negativos da energia de um elétron, e que redundaram na “teoria dos buracos” da antimatéria. Dentro do mesmo problema formal, Feynman propôs que o antielétron fosse visto como um elétron movendo-se para trás no tempo. Os formalismos são equivalentes, mas as ontologias são radicalmente diferentes). Se a categoria de formalização nos leva a tais dificuldades, a categoria de rigor também nos levanta problemas. Dois casos são suficientes para assinalar como a exigência do rigor teria bloqueado um avanço científico. O primeiro é o desenvolvimento que Fourier fez da teoria das séries que levam seu nome. Utilizando-as como uma ajuda na sua teoria do calor, Fourier passou por cima de uma quantidade de problemas matemáticos que levaram perto de um século para serem esclarecidos (ou que ainda não foram esclarecidos de todo, se levarmos em conta que uma das consequências da teoria das séries de Fourier foi a teoria dos conjuntos de Cantor). O segundo exemplo é a postulação, por parte de Dirac, da “função delta”. Dirac postulou a função, utilizou-a e deu dela apenas uma imagem intuitiva; a sua teoria rigorosa só veio duas décadas mais tarde, com a “teoria das distribuições” de Laurent Schwartz. Na verdade, um exame da história das ciências naturais mostra como nem a “formalização” nem o “rigor” constituem a essência do método científico. O problema da cientificidade de uma disciplina está na intencionalidade que a constitui. Uma analítica do objeto mostra como as ciências naturais se fundam no rompimento da instrumentalidade das coisas do mundo, e como, em certos casos, a intencionalidade com que a disciplina científico-natural se constitui permite o surgimento do “rigor” e da “formalização” dentro dela (a biologia e certas partes da química não são “matematizáveis”, embora isto não lhes retire seu status de ciência). Esta investigação, que se desenrola no campo da fenomenologia da “coisa”, está fora dos limites de nosso assunto aqui. Uma outra perspectiva para a elucidação do problema da ciência está numa elucidação fenomenológica da história, baseada numa perspectiva análoga à que nos conduziu a uma analítica do objeto. Empiricamente sabemos que a “ciência ocidental” é um fenômeno moderno, pós-medieval. Uma fenomenologia da história poderia, talvez, elucidar o “corte” na visão-do-mundo que parece se ter dado com o Renascimento, e que gerou historicamente fenômenos como o capitalismo, a tecnologia, a ciência, a noção estreita de arte dentro da qual vivemos.

A importância da elucidação para nós do que seja a “ciência” está no esclarecimento do status de uma teoria da comunicação . Se esta teoria se constituir dentro de uma ciência social, se ela for uma teoria sociológica da comunicação, ou uma teoria psicológica da comunicação, a validade e a verdade de seus resultados dependerão, em último plano, do status de sua ciência fundadora. Se por outro lado ela se apresentar — como a analítica existencial da comunicação se apresenta como “ontologia fundamental”, esta ontologia fundamental deve justificar os motivos para o “corte” entre as ciências naturais e as ciências sociais, desta maneira justificando seu status (provocadoramente) arqui-científico (onde o arqui — deve ser compreendido no sentido de arkhé, “princípio, “fundamento”). Em linhas gerais, conforme uma analítica do objeto o elucida, o motivo para o “corte” é a diferente constituição fenomenológica dos dois campos: as ciências naturais são “teorias da coisa”, as ciências sociais “teorias do objeto”. Em linhas gerais isto nos mostra que a questão da ciência até hoje não teve uma formulação adequada, fora de tentativas esparsas. Já é tempo de dela encontrarmos a formulação adequada.