Intuição

(Lalande)

As duas fontes do uso atual do termo intuição, cartesiana e kantiana, introduzem na acepção da palavra duas tendências que ou se combinam ou dissociam, consoante os casos: a primeira é a ideia de evidência, de plena clareza intelectual (cf. videri, intueri); a segunda é a de apresentação concreta, de realidade atualmente dada. Ao passo que a primeira não contém nem admite qualquer inferência, a segunda não se opõe necessariamente ao uso do raciocínio: há um modo de aplicação dos princípios inseparavelmente incorporados nas coisas sobre as quais se raciocina e que constitui um raciocínio intuitivo. […]

Por outro lado, e pelas mesmas razões, a palavra intuição serve frequentemente para designar simultaneamente a visão concreta das coisas (na medida em que se opõe a abstração) e a penetração com que se sente ou se adivinha o que nelas não é aparente. […]

A acepção mais original desta palavra, aquela em que não pode ser substituída por qualquer outra, é o sentido de visão imediata e atual, apresentando as mesmas caraterísticas que o conhecimento sensível, e por isso propomos que só seja autorizada nesta acepção; e nos outros casos sirvamo-nos tanto quanto possível dos termos evidência, instinto, divinação, etc..

([wiki base=”FR”]André Lalande (philosophe)[/wiki], Vocabulaire Technique et Critique de la Philosophie, 5.a ed., pp. 525-526.)


Além do conhecimento discursivo, da dedução e da indução, apresenta-se também a intuição como forma de conhecimento, tanto em ciência quanto em filosofia. Ao contrário do discurso, que consiste em “correr”, ou “discorrer”, de um conhecimento para outro, conhecendo umas coisas “por meio” de outras, o método intuitivo consistiria em apreender as coisas de modo direto ou imediato, sem a mediação de outras. O exemplo que geralmente se apresenta de conhecimento intuitivo é a percepção sensível e a apreensão dos princípios evidentes, bem como dos vínculos lógicos que, no raciocínio, legitimam a passagem de umas proposições para outras.

Para não falar na intuição como pressentimento, iluminação súbita, etc. mas considerando apenas a percepção sensível, é fácil verificar que o conhecimento jamais pode ser intuitivo, quer dizer, imediato ou direto, pois qualquer percepção, por mais rápida que seja, transcorre no tempo, e a persistência do objeto no campo da sensibilidade e da consciência implica sempre a memória que, consequentemente, “mediatiza” a percepção que, à primeira vista, poderia parecer imediata. Se, ao ouvir a pessoa com quem fala o interlocutor se esquecesse do que diz à medida que fala, não ouviria coisa alguma e não teria percepção auditiva. Se ouve a última sílaba da palavra é porque conserva a lembrança das anteriores que permite ouvi-la como última. A intuição só seria possível na hipótese de uma consciência eterna e imóvel que contemplasse objetos eternos e também imóveis. Todavia, a única consciência de que se tem a experiência é a consciência humana que, por ser situada e datada, é essencialmente temporal e histórica e, portanto, só pode conhecer as coisas discursiva e não intuitivamente.