Fernandes: ser – experiência – instrumento

Por meio de uma Ontologia da Experiência (como em Ontologia, na minha concepção, não há dinâmica alguma, dei ao primeiro Capítulo o título de “Estrutura da Experiência”), exponho a tese de que, em nossa “verdadeira natureza”, em nosso ser-em-si, somos experiências, não as “temos”. É o instrumento constituído pela mente, pelo pensamento e pela linguagem, que entretém a concepção de que seríamos não as Experiências em si mesmas, mas seus “experienciadores”. Acontece, como já disse, que não somos nem mente, nem pensamento, nem linguagem, cujo estatuto é o de serem meros instrumentos da “obra do Espírito” ou “Criação”.

A tese de que só há experiências não é nova na história da Filosofia. Mas como, para mim, experiência é precisamente o que somos, no sentido pleno de Ser, tal tese, no meu entender, equivaleria à de que só haveria seres humanos. Isto, no entanto, é um absurdo, não só por conta de sua implicação solipsista, mas também porque, se fosse verdade, então seria impossível determinar o ser do “ser humano”, ou o ser da “experiência”. A experiência que “é” ser humano teria que ser idêntica ao Ser em si mesmo, ou ao Ser enquanto Ser. Devido às características ontológicas próprias da experiência em geral, que inclui um contraste entre Ser e Não-Ser, ou entre Ser e Existir (ou ser “identificado” pela mente, o pensamento e a linguagem), a tese de que o próprio Ser enquanto Ser “seria” experiência acaba fatalmente levando ao erro de reduzir o Ser à Existência ou ao que de fato não poderia ser o próprio Ser, a fortiori, às aporias comuns a todos os “existencialismos”.

A verdade fundamental, como todos sabem, consiste em que o Ser enquanto Ser “é”, sendo impossível que não “seja”, ao passo que a experiência, ou o Ser como (hei, qua, als) Experiência inclui em sua estrutura mesma uma dualidade irredutível de Ser e Não-Ser. Ora, ao contrário da pergunta pelo ser do Ser, que não tem sentido, a pergunta pelo ser da experiência constitui o sentido mesmo da nossa investigação. E se a experiência tem ser, ou se há tal coisa a investigar-se, que seja o ser da experiência (If there is a fact of the matter…), então é impossível que haja somente experiências (ou seres humanos). Em geral: o ser de alguma coisa não pode consistir em sua existência, eis aí um dos pontos em que me separo mais radicalmente da tradição.

Minha concepção é a de que o ser da Experiência é “criação”, não no sentido de que somos os criadores de nós mesmos — o que até poderia ser verdade, se só houvesse experiência — , mas no sentido de que somos “expressões da Criação” ou simplesmente, “criaturas”. Não tendo, para mim, a noção de “criação” coisa alguma a ver com o tempo (mas sim com a noção de “reflexo”, interpretada num sentido atemporal), nosso Ser, que é Ser-Experiência, é… como direi? (faute de mieux) uma “extensão” do próprio Ser enquanto Ser. Em termos de Teologia especulativa, embora “Filho de Deus”, ou “criatura de Deus”, o Ser do humano, na minha concepção, não seja… “kenótico”. Antecipo o que afirmarei no primeiro Capítulo: o Ser não admite gradações ou degradações.

E o Ser que é criador. Mas para ser criador, é necessário que, além de Ele ser o Ser enquanto Ser, Ele seja também “Experiência”. Ora, não podendo o Ser enquanto Ser, nele mesmo, em si mesmo ou enquanto tal, ser também experiência, pois Ele só pode ser o que “é” e nada mais nem menos, então nós é que somos o Ser como ou enquanto Experiência, ou, mais exatamente, uma experiência do Ser, desdobrada em infinitas configurações puramente qualitativas, únicas, irrepetíveis, incomparáveis, e, portanto sem duração ou eternas. Em linguagem teológica, não poderíamos “ter” experiência “de” (objeto) Deus porque nós é que somos, não objetos de Sua Experiência, mas Ele mesmo como Experiência em si mesma ou agora com essas qualificações, “experiências de Deus”.

De modo que não é verdade que só há experiências.

Mas ainda falta mencionar alguma coisa, se pretendemos descrever a estrutura do Ser. O que chamo de “extensão do Ser em Experiência” (“criação”) só pode realizar-se com o concurso do Não-Ser, ou, na minha terminologia, da Existência, que é o estar fora do Ser. O instrumento dessa realização é, como disse, a mente, o pensamento e a linguagem, que provêm à Experiência em si mesma seus objetos, ou a projeção daquilo que deve ser o objeto a ser acolhido por infinitas formas de autêntica Experiência, acolhimento que chamarei de compreensão. Toda e qualquer forma de incompreensão não pertence ao Ser, quer ao Ser enquanto Ser, quer à sua extensão criadora em Experiência, ou Experiência em si mesma, que é o que nós somos em nós mesmos. A incompreensão pertence tão-somente ao instrumento da extensão criadora e a principal característica ontológica do instrumento é a de que ele nada poderia ser “em si mesmo”.

Mas ainda estamos a meio caminho. Acontece que no instrumento ao qual pertence, por exemplo, dentre infinitas outras, a ideia de “ponto de vista” (exclusivo), “realmente” há incompreensão, o que aliás lhe é inerente, ou indispensável à eficácia de seu próprio funcionamento. Essa incompreensão, que inclui o que chamarei de “pensamentos de abandono”, e é rastreável até à máxima equivocação ventriloquente sobre a procedência da voz — “Pai! Por que me abandonaste?!” — , tem sua raiz na ideia, da mente, do pensamento e da linguagem, de que a mente, o pensamento e a linguagem… seriam alguma coisa “em si mesmos”. Por sua vez, essa ideia do instrumento, ideia que não tem nada a ver com a ideia sartreana de “ser-para-si”, essa ideia de que um instrumento poderia ser alguma coisa “em si mesmo” decorre de sua própria constituição como projetor de objetos, o mais longe possível do Ser, na rotunda do Não-Ser, ou Existência. Não surpreende, então, que o próprio instrumento (mas não o Ser Humano!) tome essa projeção ou “objetivação” como a projeção da “realidade em si mesma”, ou reflexo daquela extensão criadora pela qual o Ser em si mesmo estende-se em Experiências. A distância aí gerada entre as objetivações da mente, do pensamento e da linguagem, e a Experiência como extensão criadora do Ser, é, obviamente, infinita. Corresponde, de fato, ao “espaço” que ocupa — mais uma vez, no instrumento — o chamado “Problema do Mal” (ou, na sua melhor versão, que vem a ser, inequivocamente, aquela de raízes “intelectualistas”, aquilo que se chama de “Ignorância”). Uma equivocação de tal ordem, não deixa por isso, no entanto, de ser inerente ao funcionamento do instrumento na sua função de artífice do contraste entre Ser e Não-Ser, necessário à experiência, embora a incompreensão, “ignorância” ou impossibilidade de acolhimento equânime (sem julgar) daquilo que é objetivo ou artifício do instrumento, equivalha à pura ausência — no instrumento — de verdadeira Experiência e contraste necessariamente com esta última, que é então pura presença, ou “Espírito”.

A estrutura do Ser é, pois, triádica: constitui-se do Ser em si, de sua extensão em Experiência em si, que coincide ontologicamente com a Presença de Espírito, e do próprio Espírito, que “participa” de ou “está envolvido em” uma dualidade, dialeticamente irredutível: Sua Presença (nosso ser) ou “Sua Ausência” (mero pensamento do instrumento de Sua Obra). A isto só posso acrescentar, aqui, que a “dualidade redutível” ou “identidade verdadeira”, entre Ser em Si e Ser como Experiência é de natureza mística, e que a “Equivalência” entre Ser como Experiência e Presença de Espírito é de natureza sagrada, só podendo, ambas, serem suficientemente investigadas num próximo livro sobre a verdadeira natureza da experiência religiosa. (p. 36-39)