Milton Santos (NE) – o espaço geográfico

Excerto de SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço (epub)

Como ponto de partida, propomos que o espaço seja definido como um conjunto indissociável de sistemas de objetos e de sistemas de ações. Através desta ambição de sistematizar, imaginamos poder construir um quadro analítico unitário que permita ultrapassar ambiguidades e tautologias. Desse modo estaremos em condições de formular problemas e ao mesmo tempo de ver aparecer conceitos, conforme a observação de G. Canguilhem (1955)CANGUILHEM, G. Formation du concept de reflexe. Paris, PUF, 1955.. Nossa secreta ambição, a exemplo de Bruno Latour, no seu livro Aramis ou l'amour des techniques (1992)Aramis, ou l’amour des techniques. Paris, La Découverte, 1992., é que esses conceitos, noções e instrumentos de análise apareçam como verdadeiros atores de um romance, vistos em sua própria história conjunta. Não será a ciência, tal como propôs Neil Postman (1992, p. 154)POSTMAN, Neil. Technopoly, the Surrender of Culture to Technology. New York.Vintage Books, 1992. "uma forma de contar histórias"? Nesse processo, levados pelo investigador, alguns atores tomam a frente da cena, enquanto outros assumem posições secundárias ou são jogados para fora. O método em ciências sociais acaba por ser a produção de um "dispositivo artificial" onde os atores são o que Schutz (1945, 1987, p. 157-158)“Sur les realités multiples”. Le chercheur et le quotidien. Paris, Meridiens Klincksieck, 1987, ch. 4, pp. 103-167. (Tradução de “On multiple realities”. Philosophy and Phenomenological Research 4, vol. 5, pp. 553-576, 1945. Versão publicada em SCHUTZ, A. The problem of social reality (Collected papers I, ed. M. Natanson). The Hague, Martinus Nijhoff, 1962, pp. 207-259). chama de marionetes ou homúnculos. Quem afinal lhes dá vida é o autor, daí esse nome de homúnculos, e sua presença no enredo se subordina a verdadeiras modelizações qualitativas, daí porque são marionetes. Mas o texto deve prever a possibilidade de tais bonecos surpreenderem os ventríloquos e alcançarem alguma vida, produzindo uma história inesperada: é assim que fica assegurada a conformidade com a história concreta.

No caso vertente, o que se busca é uma caracterização precisa e simples do espaço geográfico, liberta do risco das analogias e das metáforas. Como lembra Dominique Le Court (1974, p.79)LE COURT, Dominique. Pour une critique de L’epistemologie (Bachelard, Canguilhem, Foucault). Paris, F. Maspero, 1974. "as metáforas e as analogias devem ser analisadas e referidas ao seu terreno de origem". O brilho literário as comparações nem sempre é sinônimo de enriquecimento conceitual.

A partir da noção de espaço como um conjunto indissociável de sistemas de objetos e sistemas de ações podemos reconhecer suas categorias analíticas internas. Entre elas, estão a paisagem, a configuração territorial, a divisão territorial do trabalho, o espaço produzido ou produtivo, as rugosidades e as formas-conteúdo. Da mesma maneira e com o mesmo ponto de partida, levanta-se a questão dos recortes espaciais, propondo debates de problemas como o da região e o do lugar, o das redes e das escalas. Paralelamente, impõem-se a realidade do meio com seus diversos conteúdos em artifício e a complementaridade entre uma tecnoesfera e uma psicoesfera. E do mesmo passo podemos propor a questão da racionalidade do espaço como conceito histórico atual e fruto, ao mesmo tempo, da emergência das redes e do processo de globalização. O conteúdo geográfico do cotidiano também se inclui entre esses conceitos constitutivos e operacionais, próprios à realidade do espaço geográfico, junto à questão de uma ordem mundial e de uma ordem local.

O estudo dinâmico das categorias internas acima enumeradas supõe o reconhecimento de alguns processos básicos, originariamente externos ao espaço: a técnica, a ação, os objetos, a norma e os eventos, a universalidade e a particularidade, a totalidade e totalização, a temporalização e a temporalidade, a idealização e a objetivação, os símbolos e a ideologia.

A coerência interna da construção teórica depende do grau de representatividade dos elementos analíticos ante o objeto estudado. Em outras palavras, as categorias de análise, formando sistema, devem esposar o conteúdo existencial, isto é, devem refletir a própria ontologia do espaço, a partir de estruturas internas a ele. A coerência externa se dá por intermédio das estruturas exteriores consideradas abrangentes e que definem a sociedade e o planeta, tomados como noções comuns a toda a História e a todas as disciplinas sociais e sem as quais o entendimento das categorias analíticas internas seria impossível.