Até agora examinou-se o qualificador “geográfico” aplicado a uma entidade, o “Sistema de Informação”, que foi criticado na seção anterior. Existe, no entanto, uma proposta sustentada pelo geógrafo Jorge Xavier da Silva, que vem sendo aceita progressivamente pela comunidade científica, haja visto o título dado pelo INPE (SIG), ao sistema que desenvolveu e vem comercializando, em concorrência com outros pacotes de GIS ofertados no mercado.

A dificuldade de traduzir uma titulação concebida em outra cultura, é realmente muito grande. Não só pela diferença natural, em todos os sentidos, entre a linguagem na qual ela foi concebida e a linguagem em que se vai traduzir o título, mas também pelo que está por trás e por diante desta linguagem, seu “pano de fundo” e a “encenação” que desempenha com a Sociedade.

A dificuldade é ainda maior pelo fato de se adotarem dois títulos em inglês para o mesmo objeto técnico: Geographic Information System e Gegraphical Information System. Alguns autores americanos e ingleses, em sua forma pragmática de lidar com os objetos técnicos, usam um ou outro indistintamente, outros autores preferem se identificar com um dos títulos [Aronoff, 1989; Tomlinson, 1989; Dobson, 1993; Pickles, 1995, Sheppard, 1995], mas sem nenhuma explicação direta sobre sua escolha, como se se tratasse de simples preferência, como chega a sugerir Maguire [Maguire, Goodchild & Rhind, 1991].

Em francês, se opta pela manutenção no título do termo “Informação” ora no singular ora no plural, indicando a intencionalidade do qualificador “geográfico” se referir ao termo “Informação”. De qualquer maneira, na forma francesa é descartada a possibilidade de qualquer referência ao termo “Sistema” [Herodote, 1995; Salgé, 1991; Didier, 1990].

Voltando a forma inglesa, de acordo com a etimologia do sufixo inglês ic, de origem grega, o substantivo transformado em adjetivo pela aplicação deste sufixo, tem o sentido de indicar que o objeto qualificado por este adjetivo se refere de “forma absoluta” a um sistema de ideias, de pensamento, mencionado pelo substantivo original convertido em adjetivo. Ou seja, escolhido na tradução de Geographic Information System, o termo do título a ser qualificado como “geográfico” (“Sistema de Informação”, “Sistema” ou “Informação”), está se afirmando que o dito termo se refere de “forma absoluta” a um sistema de pensamento, no sentido de ter seu “caráter” definido por este sistema de ideias [Onions, 1969].

Segundo a etimologia, no caso de se associar além do sufixo ic outro sufixo, al, de origem latina, está se informando que esta relação a um sistema de ideias, não é de “forma absoluta”, mas relativa, no sentido de se referir, de “ser de uma espécie” associada ao substantivo convertido em adjetivo. Ou seja, se atenua a referência absoluta indicada pelo sufixo ic, em prol de uma “forma relativa”.

Desta forma, a qualificação “geográfico”, única tradução possível dos dois sentidos indicados pelos adjetivos geographic e geographical, esconde esta sutileza, na intencionalidade de quem a expressa, pois assume os dois sentidos, que o próprio dicionário Aurélio descreve como “pertencente” ou “relativo” à Geografia.

Além deste grau de subjetividade que o qualificador “geográfico” ganha na língua portuguesa, existe também um outro aspecto de extrema relevância: a que termo deve-se aplicá-lo, o que pode oferecer sentidos radicalmente diversos, e que guardam em sua escolha a influência de ideologias, nem sempre expostas de forma clara, principalmente no meio técnico-científico.

Aplicado ao termo “Sistema”, como se tem adotado em toda esta dissertação, não se está partilhando, de maneira alguma, qualquer ideologia que privilegie a “forma absoluta”, definidora do caráter do “Sistema”. Pelo contrário, entende-se a proposta do geógrafo Jorge Xavier da Silva, como uma tentativa de salientar que o “Sistema” SIG é um produto capaz de “refletir”, mesmo que parcialmente, o sistema de análise geográfica. O “Sistema Geográfico” seria um sistema de ideias, codificado em termos de lógica matemática, associada a estruturas de dados, capaz de “reproduzir” a análise geográfica a tal ponto, que, por isto mesmo, se pode qualificar o “Sistema” como tendo o caráter “geográfico”.

No entanto, esta intencionalidade fica guardada na mente de quem o intitula, não sendo possível desvendá-la sem desconstruir o discurso e a prática que acompanham a simples titulação — SIG. Implicando, portanto, na atribuição de todo um outro sentido, em conformidade com a “forma absoluta”, que pode justamente sustentar uma ideologia deveras questionável, a mesma que impulsiona o “programa” do Geoprocessamento, da plena informatização das disciplinas que constituem a Geociências.

Tome-se como exemplo, a proposta de criação do National Center for Geographic Information and Analysis — NCGIA, segundo exposto pelo geógrafo Jerome E. Dobson (1993a), um de seus principais idealizadores e fundadores. Como já foi dito anteriormente, os grandes teóricos da administração, são unânimes ao afirmar que toda organização se institui ao redor de um eixo de “ideais”, “valores” e “crenças”. Portanto, o NCGIA, não fugindo a regra, se baseia em sua concepção e constituição, organizacional e programática, em um ideário e uma racionalidade, que deve servir como sinalizadores do qualificador geographic, que adota em seu próprio título.

Segundo Dobson, a “maior e mais transcendental (sic) necessidade da Geografia é compreender as ligações conceituais e funcionais entre o GIS e o núcleo intelectual da Geografia”. Dobson se justifica perante os colegas geógrafos pela centralidade concedida ao GIS, pois o considera o maior “condutor” de conhecimento de e para o mundo científico e técnico.

“A revolução do GIS se caracterizou como um deslocamento fundamental dos meios de representação e análise da realidade geográfica, do analógico para o digital”. Para Dobson, o analógico se tornando incapaz de lidar com a explosão de informações a partir do Renascimento, colocou a Geografia em uma posição de desvantagem, comparativamente a outras disciplinas; graças às tecnologias da informação, este quadro está se revertendo…

Não se pretende criticar, o quanto merecem, estas posições, mas apenas destacá-las como expressões do que denominei “forma absoluta” de uso do qualificador “geográfico”. Quem se afina com a ideologia expressa por Dobson, ao aplicar o qualificador ao termo “Sistema”, pode estar não apenas criando um vínculo do objeto técnico GIS com uma tradição de pensamento, um sistema de ideias, mas possivelmente promovendo a metamorfose deste sistema com base na conceituação e na funcionalidade que acompanham o GIS.

Neste sentido, um “Sistema de Informação Geográfico” poderia significar, relembrada a própria centralidade da tecnologia na imagem do “modelo da alavanca”, algo muito maior ainda do que um simples aparato tecnológico constituído pela coalescência de outras entidades distintas do instrumento em si (pessoa, tarefa, organização e ambiente social, política, cultural e econômica). Ou seja, uma coloração ideológica subjacente a tecnologia em questão, se apresenta por meio da mesma, com a possibilidade de promover um imenso impacto sobre a análise geográfica, com o risco inclusive de estar submetendo-a a uma dramática revisão a partir de um outro sistema de ideias, constituído em associação com as tecnologias da informação. O SIG filosófica e materialmente exógeno ao pensamento geográfico estaria, nestes termos, motivando e atuando em prol de uma desconstrução/reconstrução da Geografia.

A revolução liderada pelo GIS, como propugna Dobson, corre o risco de se parecer mais com uma “sublevação”, uma “subversão” promovida por elementos exógenos à tradição do pensamento geográfico. Nunca é de mais ressaltar a importância do ser humano na condução equilibrada desta proposta de metamorfose forçada “de fora para dentro” da Geografia. A informatização da disciplina é inevitável, mas não pode implicar de maneira alguma na transformação das pessoas em periféricos dos sistemas, “dispositivos” lúdicos acionados pela interação com o Sistema de Informação Geográfico.

A revolução do SIG só tem sentido se tomada strictu sensu conforme o significado original da palavra “revolução”, um movimento que reporta à origem, a partir do qual tudo se forma segundo sua razão de ser. Este tipo de revolução é “permanente”, não sendo ativada “de fora para dentro”…

Referências: Bibliografia Mestrado

Dissertação de Mestrado (UFRJ, 1996):

CASTRO, M. C. DE. Natureza do Sistema Geográfico de Informação. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: UFRJ-PPGG, 1996.

Natureza do SIG