JONAS, Hans. O Princípio Responsabilidade. Ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Tr. Marijane Lisboa & Luiz Barros Montez. Editora: PUC-Rio, 2006

Tomemos do passado aquelas características do agir humano significativas para uma comparação com o estado atual de coisas.

1. Todo o trato com o mundo extra-humano, isto é, todo o domínio da techne (habilidade) era — à exceção da medicina — eticamente neutro, considerando-se tanto o objeto quanto o sujeito de tal agir: do ponto de vista do objeto, porque a arte só afetava superficialmente a natureza das coisas, que se preservava como tal, de modo que não se colocava em absoluto a questão de um dano duradouro à integridade do objeto e à ordem natural em seu conjunto; do ponto de vista do sujeito, porque a techne, como atividade, compreendia-se a si mesma como um tributo determinado pela necessidade e não como um progresso que se autojustifica como fim precípuo da humanidade, em cuja perseguição engajam-se o máximo esforço é a participação humanos. A verdadeira vocação do homem encontrava-se alhures. Em suma, a atuação sobre objetos não humanos não formava um domínio eticamente significativo.

2. A significação ética dizia respeito ao relacionamento direto de homem com homem, inclusive o de cada homem consigo mesmo; toda ética tradicional é antropocêntrica.

3. Para efeito da ação nessa esfera, a entidade “homem” e sua condição fundamental era considerada como constante quanto à sua essência, não sendo ela própria objeto da techne (arte) reconfiguradora.

4. O bem e o mal, com o qual o agir tinha de se preocupar evidenciavam-se na ação, seja na própria práxis ou em seu alcance imediato, e não requeriam um planejamento de longo prazo. Essa proximidade de objetivos era válida tanto para o tempo quanto para o espaço. O alcance efetivo da ação era pequeno, o intervalo de tempo para previsão, definição de objetivo e imputabilidade era curto, e limitado o controle sobre as circunstâncias. O comportamento correto possuía seus critérios imediatos e sua consecução quase imediata. O longo trajeto das consequências ficava ao critério do acaso, do destino ou da providência. Por conseguinte, a ética tinha a ver com o aqui e agora, como as ocasiões se apresentavam aos homens, com as situações recorrentes e típicas da vida privada e pública. O homem bom era o que se defrontava virtuosa e sabiamente com essas ocasiões, que cultivava em si a capacidade para tal, e que no mais conformava-se com o desconhecido.

5. Todos os mandamentos e máximas da ética tradicional, fossem quais fossem suas diferenças de conteúdo, demonstram esse confinamento ao círculo imediato da ação. “Ama o teu próximo como a ti mesmo”; “Faze aos outros o que gostarias que eles fizessem a ti”; “Instrui teu filho no caminho da verdade”; “Almeja a excelência por meio do desenvolvimento e da realização das melhores possibilidades da tua existência como homem”; “Submete o teu bem pessoal ao bem comum”; “Nunca trate os teus semelhantes como simples meios, mas sempre como fins em si mesmos”; e assim por diante. Em todas essas máximas, aquele que age e o “outro” de seu agir são partícipes de um presente comum. Os que vivem agora e os que de alguma forma têm trânsito comigo são os que têm alguma reivindicação sobre minha conduta, na medida em que esta os afete pelo fazer ou pelo omitir. O universo moral consiste nos contemporâneos, e o seu horizonte futuro limita-se à extensão previsível do tempo de suas vidas. Com o horizonte espacial do lugar ocorre algo semelhante, no qual o que age e o outro se encontram como vizinhos, amigos ou inimigos, como superior hierárquico e subalterno, como o mais forte e o mais fraco, e em todos os outros papéis nos quais os homens têm a ver uns com os outros. Toda moralidade situava-se dentro dessa esfera da ação. Segue-se daí que o saber exigido ao lado da vontade moral, para afiançar a moralidade da ação, corresponde a esta delimitação: não é o conhecimento do dentista ou do especialista, mas o saber de um tipo que se encontra ao alcance de todos os homens de boa vontade. Kant chegou a dizer que “em matéria de moral a razão humana pode facilmente atingir um alto grau de exatidão e perfeição mesmo entre as mentes mais simples”.1 Que “não é necessária uma ciência ou filosofia para se saber o que deve ser feito, para se ser honesto e bom, e mesmo sábio e virtuoso. […] [A inteligência comum pode] ambicionar alcançar o bem tão bem quanto qualquer filósofo pretenda para si.”2 “Para saber o que […] devo fazer para que minha vontade seja moral, para tanto não preciso de nenhuma perspicácia de longo alcance. Inexperiente na compreensão do percurso do mundo, incapaz die preparar-me para os incidentes sucessivos do mesmo, ainda assim posso saber como devo agir em conformidade com a lei moral.”3

Nenhum outro teórico da ética foi tão longe na diminuição do lado cognitivo do agir moral. Mas, mesmo quando este ganha um significado muito maior, como em Aristóteles, para quem o conhecimento da situação e daquilo que lhe convinha estabelece exigências consideráveis à experiência e ao juízo, tal saber nada tem a ver com a ciência teórica. Ele evidentemente implicava um conceito universal do bem humano como tal, baseado em determinadas constantes da natureza e da situação humana, e esse conceito universal do bem poderia ou não ser desenvolvido numa teoria própria. Mas a sua transposição para a prática exige um conhecimento do aqui e agora, e este é inteiramente não-teórico. Esse conhecimento próprio da virtude (o de saber onde, quando, a quem e como se deve fazer o quê) prende-se às circunstâncias imediatas, em cujo contexto definido a ação segue o seu curso como ação do ator individual, nele encontrando igualmente o seu fim. Se uma ação é “boa” ou “má”, tal é inteiramente decidido no interior desse contexto de curto prazo. Sua autoria nunca é posta em questão, e sua qualidade moral é imediatamente inerente a ela. Ninguém é julgado responsável pelos efeitos involuntários posteriores de um ato bem-intencionado, bem-refletido e bem-executado. O braço curto do poder humano não exigiu qualquer braço comprido do saber, passível de predição; a pequenez de um foi tão pouco culpada quanto a do outro. Precisamente porque o bem humano, concebido em sua generalidade, é o mesmo para todas as épocas, sua realização ou violação ocorre a qualquer momento, e seu lugar completo é sempre o presente.


  1. Fundamentação da metafísica dos costumes, Prefácio. 

  2. Ibidem, Primeira parte. 

  3. Ibidem. 

Hans Jonas