Excertos de Lévy-Brühl, La morale et la science des moeurs, 1903, pp. 191-199, 208-211 e 256.
À antiga divisão da moral em teórica e prática tende a substituir-se uma concepção mais conforme com as analogias científicas: por um lado, a ciência ou um grupo de ciências cujo objeto é a realidade social, por outro, a arte racional assente naquela ciência. […]1)
Em primeiro lugar, já não faz sentido que os filósofos «fundamentem» a moral. Tal intento, excessivo, mas, em certo sentido, respeitável por provir da necessidade de racionalizar a ação, foi sempre ilusório. Não há mais razão para «fundamentar» a moral do que a «natureza», no sentido físico da palavra. Ambas existem de fato, e tal existência impõe-se a cada indivíduo e não lhe consente duvidar da sua objetividade.
No que respeita à natureza física, é claríssimo. E relativamente à «natureza social», há maior razão para duvidar? A um indivíduo normal, que viva numa sociedade qualquer, a nossa por exemplo, impõe-se uma realidade social que preexiste a ele e lhe há-de sobreviver. Não lhe conhece nem a origem nem a estrutura. Tem de conformar-se com as obrigações, costumes, leis, proibições, usos mesmo e conveniências, sob pena de sanções diversas, ora exteriores, ora íntimas, mais ou menos determinadas, mais ou menos difusas, mas que se fazem sentir do modo mais incontestável pelos efeitos que produzem e pela intimidação que exercem. Que fique aos filósofos o conceber uma metafísica dos costumes, como concebem uma metafísica da natureza. Mas, assim como se não encontra hoje metafísico que confunda a sua especulação com a obra da ciência propriamente dita, que se limita pacientemente, e com gloriosa humildade, a estudar os fenômenos e as suas leis, também a metamoral, se subsistir, tem, doravante, de distinguir-se da ciência, ou, melhor, do grupo complexo de ciências que se propõem o estudo positivo da realidade social. Tal como a outra, não tem a realidade de «construir-se» nem de «fundamentar-se». Como a outra ainda, temos simplesmente de a observar, analisar e reduzir a leis.
De entre as consequências que decorrem desta nova concepção, uma há que achamos particularmente penosa, sobretudo por razões sentimentais: é a necessidade em que ficamos de considerar a mesma moral (quer dizer, o mesmo conjunto de obrigações, prescrições e proibições) de dois pontos de vista inteiramente diversos, segundo a encaramos de dentro ou de fora, conforme nos sentimos submetidos aos seus imperativos ou os olhamos como fatos sociais, objetos de ciência. Do primeiro ponto de vista, a excelência deste conjunto de prescrições está fora de causa. Apresenta-nos ele um ideal de bondade, de santidade, de justiça e de amor que muito bem sabemos não poder alcançar. Também a maior parte dos homens imaginam as leis morais como ordens de Deus mesmo, ou não creem poder conformar-se com elas sem o socorro da sua graça. Em suma, a representação do ideal moral provoca tais sentimentos de veneração e de adoração que toda possibilidade de crítica é antecipadamente excluída. A consciência moral assenta no seu próprio imperativo como num absoluto. Do ponto de vista externo, ou da ciência, o conjunto das prescrições não se figura já com as mesmas características. Já não as julgamos a priori as melhores possíveis, nem sagradas, nem divinas. Temo-las por solidárias, na verdade, do conjunto das outras séries concomitantes de fenômenos sociais. Os sentimentos morais e as práticas morais de uma sociedade determinada estão necessariamente ligados, para o sábio, às crenças religiosas, ao estado econômico e político, às aquisições intelectuais, às condições climatéricas e geográficas e, por conseguinte, também ao passado dessa sociedade; e, como têm evoluído até agora em função de tais séries, hão-de evoluir semelhantemente no futuro. Este modo de ver, consequência imediata da concepção científica, é constantemente verificado pelo emprego do método comparativo. Aplica-se à nossa própria moral, como a todas as outras.
Esta (e da mesma maneira outra qualquer) não se afigurará mais como uma representação ideal da atividade perfeita e da excelência moral. Confessaremos que é, em dado momento, tão boa e tão má quanto pode sê-lo. Reconheceremos aí um caso de aplicação do princípio das condições de existência, que o progresso do saber científico tem genericamente substituído à consideração metafísica da finalidade. […] Quais são essas condições e as suas consequências num caso dado, não podemos adivinhá-lo a priori, mas devemos buscá-lo no estudo dos fatos.
As consequências desta introdução do método científico não modificam apenas o carácter desta especulação moral: deslocam-lhe o eixo e o centro de gravidade. O que servia de princípio de explicação, a consciência moral, torna-se, pelo contrário, o objeto da investigação científica. Em vez de especularmos sobre o homem, ser naturalmente moral, cumpre ver como o conjunto das prescrições, obrigações e proibições que constituem a moral de uma sociedade determinada se formou ero função das outras séries de fenômenos sociais. Por consequência, não temos já o direito de afirmar a existência, sob a diversidade real das morais existentes ou passadas, de uma raiz ou origem moral comum a todas. Ou, pelo menos, a considerarmos tal hipótese — e é-nos lícito fazê-lo, sob a condição de a submetermos à prova dos fatos, como toda hipótese científica—, fica-nos o pesquisar dos elementos constantes de todas as morais humanas. Não podemos determinar antecipadamente quais são, nem sobretudo alicerçar-nos nesta determinação prévia para considerar esta ou aquela moral determinada como tipo aberrante, como deformação mais ou menos grave da moral original. […] A ciência comparada das religiões, das artes, do direito, das instituições em geral, das línguas, tende a mostrar que, nas sociedades que evoluíram, ao que parece, independentemente umas das outras, o processus de desenvolvimento apresenta muitas vezes analogias impressionantes. São elas tão precisas, por vezes até ao mais pequeno pormenor, tão regulares na sucessão uniforme das fases, que não é possível tê-las por fortuitas. Temos de admitir, portanto, que, nas diferentes sociedades, as instituições evoluem segundo as mesmas leis sociológicas e psicológicas. Nisto consiste a hipótese de que se trata. Mas devemos tomá-la apenas como «heurística», e não como explicativa. […]
A especulação moral científica propõe-se muito modestamente apenas, e decerto por muito tempo ainda, problemas muito especiais e historicamente definidos. De onde provém esta obrigação, aquela proibição, que se encontram em várias sociedades distintas? Como se apresentava o sentido da responsabilidade individual, quer penal quer civil, quando apareceu? Por que formas passou a propriedade da terra, dos bens móveis, dos escravos? Qual foi a sucessão das formas do casamento, da família? — Mas, dirão talvez, isso não é especulação moral: é sociologia. — É verdade, mas que especulação moral científica pode de hoje em diante haver que não seja o estudo comparado das morais que existem ou têm existido?
À especulação dialéctica sobre os conceitos e os sentimentos morais há-de substituir-se o conhecimento científico das leis da realidade social; analogamente, a «moral prática» tradicional deixará o lugar a uma «arte racional» moral ou social, como queiram chamar-lhe, assente nesse conhecimento científico. Assim se completará, do ponto de vista da aplicação, o que tentamos estabelecer do ponto de vista da teoria. Se a moral é verdadeiramente uma arte comparável à mecânica e à medicina, de harmonia com a expressão de Descartes, essa arte empregará no melhoramento dos costumes e das instituições existentes o conhecimento das leis sociológicas e psicológicas, como a mecânica e a medicina utilizam a ciência das leis matemáticas, físicas, químicas e biológicas.
Não tentaremos portanto instituir regras de conduta, preceitos destinados a ser seguidos por cada consciência, nem estabelecer uma hierarquia de «deveres» para todo ser livre e dotado de razão; tentaremos, o que é muito diferente, determinar, na medida das nossas forças, o que seria a «arte racional moral». Determinação necessariamente muito imperfeita, porque as aplicações não podem descobrir-se, geralmente, senão quando a ciência atingiu um certo grau de avanço e as ciências sociológicas não saíram ainda do período de incubação. Na verdade, devemos considerar esta arte, hoje, como um desideratum.
Na opinião do A., independentemente da antiga concepção de «moral teórica», a palavra moral pode ser tomada em três acepções diversas: 1) conjunto das concepções, juízos, sentimentos e usos relativos aos direitos e aos deveres respectivos dos homens entre si, reconhecidos e geralmente respeitados, num período e numa civilização determinados; 2) ciência desses fatos sociais, como se denomina física a ciência dos fenômenos da natureza; 3) aplicações desta ciência.—A essas acepções corresponderão três termos, respectivamente: os fatos morais ou as «morais»; a ciência destes fatos ou da realidade social; a arte moral racional. (N. T. ↩