Noção ambígua (toda noção é ambígua), seu desenvolvimento teórico parece começar com o Iluminismo. Desde o século XVI aparece na língua francesa a palavra “civilizado” no sentido de “polido”. “Polido” liga-se ao étimo “polis”, a cidade. “O adjetivo ‘civilizado’ e o verbo ‘civilizar’ evocavam realidades antigas, medievais a rigor, mas fundadas em ambos os casos num mundo geograficamente limitado, cujo centro era a cidade”. Exatamente no mesmo sentido com que Aristóteles empregava a expressão “o homem é um animal político”. Pertencer à cidade implica em aderir à cultura material do grupo social que recorta valorativamente os produtos ideológicos que o homem cria para se explicar diante do mundo.
Desde seu nascimento “civilização” pertence ao plano ideológico. Para o Iluminismo a civilização se tornará em Civilização: único modelo adequado de existência para os povos e racionalidade na fundação da adequacionalidade existencial. Desde as grandes viagens e conquistas dos séculos XV e XVI o homem ocidental toma consciência da força de sua razão: os selvagens (cujo étimo vem de silva, selva) serão retirados do estado lamentável em que se encontram pela força das armas. Formas de existência distinta, seu comportamento será medido numa escala em cujo cume se encontram os costumes, leis e valores da civilização ocidental cristã. Ou seja, Civilização é uma meta e um ideal a alcançar pelos diversos povos da Humanidade.
Sob a influência do darwinismo, para quem o progresso cultural corresponde à evolução orgânica, a antropologia se iniciará, pelas teses de seus dois grandes prógonos, na afirmação da supremacia da civilização. Dirá Morgan: “Como é incontestável que partes da família humana viveram num estado de selvajaria, outras num estado de barbárie e outras partes ainda num estado de civilização, é igualmente incontestável que estas três condições distintas sejam ligadas uma à outra numa sequência de progresso natural tanto como necessário” (in Ancient Society). E Tylor definirá a tarefa dos antropologos dizendo que eles “são capazes de estabelecer ao menos uma escala grosseira de civilização colocando simplesmente as nações europeias numa extremidade das séries sociais e as tribos selvagens na outra, dispondo o resto da humanidade entre estes dois limites” (in Primitive Culture). Sob a influência do Evolucionismo estabelecia-se uma linha que ia dos primitivos macacos à Civilização. Como dirá ainda hoje Gordon Childe: “Sugerimos que a pré-história é uma continuação da história natural e que existe uma analogia entre a evolução orgânica e o progresso da cultura”. Ele próprio estabelecerá uma linha ascencional — selvajaria paleolítica, barbárie neolítica, barbárie superior, primitiva civilização do bronze, idade primitiva do ferro — onde, pelo próprio método empregado, a Civilização será o cume e a referência absolutos.
Este mesmo modo de pensar vai levar à confusão de história e civilização ou de civilização e lógica : o indivíduo só é um ser histórico e lógico de modo pleno quando pertence à nossa Civilização. Quando se leva este escalonamento ideológico às suas últimas consequências, vê-se que ele vai dos primatas ao super-homem ariano. Raymond Aron mostra que se pode falar a respeito de Civilização no exame de três perspectivas fundamentais: de sua originalidade, de sua coerência e do esquema do devir. Ora, este esquema do devir é hoje vetorizado pela articulação das relações de produção no plano internacional, o que inclui — ou tende a incluir — todos os grupos sociais existentes no mercado econômico mundial. No plano ideológico existe atualmente uma referência para o julgamento do que é mais e menos civilizado: o “progresso” técnico. Ser civilizado, pertencer à polis é pertencer ao mundo tecnológico. E isto marca ao mesmo tempo a originalidade e a coerência da chamada civilização ocidental cristã. Os valores se articulam em tônio da produção social desta civilização tomada como um todo e tendo como eixo a produção no seu nível tecnológico. Os fatos se concretara em torno da importância (para a noção de “importância”, que esta tem. O fato só adquire importância em relação ao recorte cultural realizado pelas forças produtivas. Ambos os níveis, o social o e cultural, colocados no plano do vivido é que permitirão articular a Civilização. Ou seja, a Civilização é uma noção empírica, ideológica e que não possui nenhum fundamento científico. Mas seus valores condicionam o civilizado a pensar de um modo determinado. A noção de progresso é que articula a noção de civilização. Lévi-Strauss analisa este problema pensando a diversidade cultural. Ele diz que as diferenças culturais se danam por afastamento geográfico, propriedades particulares do ambiente natural, ignorância das outras culturas e, noutro nível, pelo desejo de se opor, de se distinguir do outro, “d’etre soi”. A diversidade das culturas depende menos do isolamento dos grupos que das relações que os unem. Lévi-Strauss se recusa a ver as culturas dentro de um escalonamento onde uma forma cultural sucedesse à outra. Diz que se podem pensar dois tipos de sociedades: as ‘quentes’ e as ‘frias’. A sociedade que tem uma história estacionária, circular, ele denomina ‘fria’; ela combina poucos elementos da grande variedade possível do homem e realiza certos ciclos para voltar ao seu percurso inicial. É vista como mantenedora da ordem, produzindo pouca entropia e quase nenhum afastamento diferencial. A sociedade ‘quente’ acumula suas conquistas em forma linear, o que dá origem a um desdobramento de formas. Desde que uma sociedade começa a se elaborar numa certa direção, ela produz seus objetos de modo cada vez mais complexo. Esta necessidade de diferenciação incide inclusive na sociedade e as sociedades quentes são fabricantes de entropia: têm que haver grandes diferenças para que a entropia possa ser canalizada. Na história estacionária das sociedades frias estas teriam pouco contato com as outras sociedades, enquanto as sociedades quentes acumulam suas experiências mutuamente. Lévi-Strauss diz que não há sociedades absolutamente estacionárias: todas acumulam, mas em graus distintos. Pois toda cultura contém em si duas forças contraditórias, uma que tende à unificação e outra que tende à diversificação.
Assim, a chamada Civilização não seria um caso único na História, se bem que a contemporaneidade a viva como tal. O modo de realizar da Civilização é apenas distinto de outras culturas, mas de modo algum “superior”. Por exemplo, a arte civilizada não comunica na sociedade — com Picasso ou Stravinsky, por exemplo — enquanto a função primordial da arte nas chamadas sociedades primitivas seria semântica. O que seria progresso aqui, se não se tem nenhuma referência para julgá-lo? Como dizer que há progresso no desenvolvimento tecnológico quando este é acompanhado da intensificação da exploração do homem pelo homem? Onde se poderia aplicar então a noção de progresso? “Nem em Race et Histoire, nem em Tristes Tropiques, procurei destruir a ideia de progresso, mas antes procurei fazê-la passar do grau de categoria universal do desenvolvimento humano ao do modo particular de existência próprio à nossa sociedade (e talvez a algumas outras) quando ela experimenta se auto-pensar”. O conceito de Civilização só poderia, segundo Lévi-Strauss, ser pensado internamente à própria cultura que o elabora, ou seja, acompanhando a evolução dos diversos traços culturais. Mas a crítica de Lévi-Strauss é ainda insuficiente. Pois aborda o conceito de cultura já realizada e tenta pensar a cultura em sua dicotomia com a sociedade. No plano do simbólico pode-se mostrar que há uma autonomia relativa dos sistemas chamados “culturais” mas no plano social, isto é, onde a cultura se manifesta a articulação é dada pela estrutura das relações de produção. Aqui, cultura e sociedade são inseparáveis. E a chamada Civilização não existe unicamente no plano cultural (para análise mais sistemática. (Chaim Samuel Katz)