Eudoro de Sousa, A COMPLEMENTARIDADE, SEGUNDO F. GONSETH (DIANOIA, 1948)
«Imaginemos dois horizontes sucessivos de realidade, um horizonte aparente e um horizonte profundo. O primeiro, que Gonseth também denomina mundo próprio (do homem), para não incorrer nos extremos idealista (‘mundo’ compensa o idealismo extremo) e realista (‘próprio’ compensa o realismo extremo), poderia identificar-se com o horizonte do senso comum ou, por exemplo, com o da ‘metafísica natural do espírito humano’ (Bergson). Enquanto não se nos depare qualquer fenômeno que transgrida a ordem natural em que progressivamente se organizaram as experiências e noções dadas no horizonte aparente (era o caso da física, até cerca de 1900), nenhum motivo nos leva a suspeitar da existência de um horizonte profundo. Mas, seja qual for o acontecimento que uma vez se atribua ao horizonte profundo, jamais viremos a conhecê-lo senão pelos vestígios da sua emergência no horizonte aparente […]. Sem excluir a eventualidade de um acontecimento ‘profundo’ poder emergir na ‘aparência’, de forma a que seus vestígios sejam de uma única espécie (V), pode dar-se, e efectivamente se dá, o caso de certos acontecimentos do horizonte profundo deixarem vestígios de diversas espécies (V’, V”, …), e tais que nenhuma construção intelectual permita integrá-los na ‘natureza’, como realidades simultaneamente compatíveis com os princípios que regem a própria estrutura do horizonte aparente. Quando não sejam de considerar senão duas espécies de vestígios ‘aparentes’ de um acontecimento ‘profundo’, esses vestígios dizem-se complementares. É evidente que, nestes termos, o enunciado de Gonseth descreve a situação atual das teorias físicas; basta substituir ‘horizonte aparente’ por ‘horizonte clássico’ e ‘horizonte profundo’ por ‘horizonte quântico’ e dizer que o vestígio V’ é, por exemplo, ‘onda’, e o vestígio V”, ‘partícula’. A emergência do acontecimento verificado em uma aparelhagem, cujo funcionamento obedece rigorosamente às leis ‘clássicas’ e racionalmente conformado às categorias ontológicas de substância e causalidade. Noutros termos, os ‘vestígios’ podem ser entendidos como ‘projeções’, e dizemos que, analogamente ao que se dá na geometria, em que as propriedades invariantes das figuras só nos são dadas através de certas funções das coordenadas (diversas de sistema para sistema), também cada fenômeno físico poderá ser considerado como uma projeção da realidade, no campo experimental (M. Born). Mas tão evidente é que o mesmo enunciado se presta a uma transposição prenhe de insuspeitadas consequências filosóficas. Com efeito, ‘o ser humano, no que respeita a suas relações com o exterior, pode ser comparado a uma aparelhagem experimental’ e ‘neste sentido, todos os elementos do nosso horizonte natural […] se tornam assimiláveis a vestígios de um universo mais finamente estruturado’. Quer dizer: a passagem do horizonte aparente ao horizonte profundo […] ascende à dignidade de uma operação filosófica fundamental. Gonseth conclui pela afirmação de que a complementaridade ‘toma o aspecto de uma experiência metafísica, na qual, por mudança de perspectiva, uma oposição polar se transformou em oposição complementar, e que esta única experiência (refere-se à da física quântica) basta para que tenhamos perdido o direito a pretender que qualquer outro par de noções polares não possa vir a sofrer semelhante mutação’. E aduz: ‘não há razão teórica para pensar que duas noções quaisquer, opostas por polaridade, não possam aparecer um dia como dois aspectos de uma única realidade de outro horizonte’.»