HESSEN, Johannes. Teoria do Conhecimento. Tr. João Vergilio Gallerani Cúter. São Paulo: Martins Fontes, 2000
Por dogmatismo (do grego dógma, doutrina estabelecida) entendemos a posição epistemológica para a qual o problema do conhecimento não chega a ser levantado. A possibilidade e a realidade do contato entre sujeito e objeto são pura e simplesmente pressupostas. É auto-evidente que o sujeito apreende seu objeto, que a consciência cognoscente apreende aquilo que está diante dela. Esse ponto de vista é sustentado por uma confiança na razão humana que ainda não foi acometida por nenhuma dúvida.
O fato de que, para o dogmatismo, o conhecimento não chega a ser um problema, repousa sobre uma visão errônea da essência do conhecimento. O contato entre sujeito e objeto não pode parecer questionável se não se vê que o conhecimento apresenta-se numa relação. É o que ocorre com o dogmático. Ele não vê que o conhecimento é, essencialmente, uma relação entre sujeito e objeto. Ao contrário, acredita que os objetos de conhecimento nos são dados como tais, e não pela função mediadora do conhecimento (e apenas por ela). Ele desconsidera esta Última. E isso vale não apenas para o campo da percepção, mas também para o do pensamento. Segundo a concepção do dogmatismo, os objetos da percepção nos seriam dados diretamente, corporeamente, e assim também os objetos do pensamento. Num caso desconsidera-se a percepção por meio da qual determinados objetos nos são dados; no outro, desconsidera-se a função pensante. O mesmo ocorre quanto ao conhecimento dos valores. Também os valores estão, para o dogmático, pura e simplesmente aí. O fato de pressuporem uma consciência valorativa permanece, para ele, tão oculto quanto o fato de todos os objetos de conhecimento exigirem uma consciência cognoscente. Aqui como lá, ele desconsidera o sujeito e sua função.
Segundo o que foi dito, pode-se falar de um dogmatismo teórico, ético e religioso. A primeira forma de dogmatismo diz respeito ao conhecimento teórico; as duas últimas, ao conhecimento dos valores. O dogmatismo ético lida com o conhecimento moral; o religioso, com o conhecimento religioso.
Sendo a atitude do homem ingênuo, o dogmatismo é, tanto psicológica quanto historicamente, o primeiro e mais antigo dos pontos de vista. No período inicial da filosofia grega, ele predominou de modo quase generalizado. As reflexões epistemológicas estão, de modo geral, afastadas do pensamento dos pré-socráticos (os filósofos jônios da natureza, os eleatas, Heráclito, os pitagóricos). Esses pensadores são inspirados ainda por uma confiança ingênua na eficiência da razão humana. Completamente voltados para os entes, para a natureza, não percebem o conhecimento como problema. Isso só irá acontecer com os sofistas. Eles levantam pela primeira vez o problema do conhecimento e tornam o dogmatismo, tomado em sentido estrito, para sempre impossível no campo da filosofia. Dos sofistas em diante, encontraremos em todos os filósofos, de uma forma ou de outra, reflexões críticas sobre o conhecimento. É verdade que Kant acreditava que a designação “dogmatismo” deveria ser aplicada aos sistemas metafísicos do século XVII (Descartes, Leibniz, Wolff). Essa palavra, porém, tinha para ele um significado mais estrito, como sua definição de dogmatismo na Critica da Razão Pura nos leva a reconhecer (“Dogmatismo é o proceder dogmático da razão pura, sem a crítica de sua própria capacidade”). Dogmatismo, para ele, é fazer metafísica sem ter antes examinado a capacidade da razão humana. Neste sentido, os sistemas pré-kantianos da filosofia moderna são, de fato, dogmatismos.
Isso não quer dizer que falte a esses sistemas toda e qualquer reflexão epistemológica e que ainda não tenham percebido o problema do conhecimento em geral. Isso acontece em todos eles, como mostram as discussões epistemológicas em Descartes e Leibniz. Não se deve falar aqui num dogmatismo geral e axiomático, mas num dogmatismo especial Não se trata de um dogmatismo lógico, mas de um dogmatismo metafísico.