J. Monod, O acaso e a necessidade1
É verdade que a ciência atenta contra os valores. Não diretamente, pois não é juiz deles e deve ignorá-los; mas ela arruína todas as ontogenias míticas ou filosóficas nas quais a tradição animista, dos aborígenes australianos aos dialéticos materialistas, fazia se buscarem os valores, a moral, os deveres, os direitos, os interditos.
Se o homem aceitar esta mensagem em seu inteiro significado, é preciso mesmo que ele desperte enfim do seu sonho milenar para descobrir sua total solidão, sua estranheza radical, Ele sabe agora que, como um cigano, está à margem do universo onde deve viver. Universo surdo à sua música, indiferente a suas esperanças como a seus sofrimentos ou crimes.
Mas então, quem define o crime? Quem diz o que é o bem e o que é o mal? Todos os sistemas tradicionais punham a ética fora do alcance do homem. Os valores não lhe pertenciam: impunham-se e ele é que pertencia a eles. Ele sabe agora que eles são só dele, e por ser enfim seu senhor parece-lhe que eles se dissolvem no vazio indiferente do universo. É então que o homem moderno se volta para, ou melhor, contra a ciência, cujo terrível poder de destruição, não só dos corpos mas da própria alma, ele avalia agora.
Onde fica o refúgio? Deve-se admitir de uma vez por todas que a verdade objetiva e a teoria dos valores constituem para sempre domínios desconhecidos, impenetráveis entre si? Esta é a atitude que parece assumir grande parte dos pensadores modernos, sejam eles escritores, filósofos ou até mesmo homens de ciência. Eu a acho não só inaceitável para a imensa maioria dos homens, entre os quais ela só pode manter e avivar a angústia, mas absolutamente errônea, e isto por duas razões essenciais:
— em primeiro lugar, é claro, porque os valores e o conhecimento estão sempre e necessariamente associados tanto na ação como no discurso;
— depois e sobretudo porque apropria definição de conhecimento “verdadeiro” baseia-se em última análise num postulado de ordem ética,5
Cada um desses dois pontos exige um breve desenvolvimento. […]
É a partir do momento em que se coloca o postulado da objetividade como condição necessária de toda verdade no conhecimento, é estabelecida uma distinção radical, indispensável à própria busca da verdade, entre o campo da ética e aquele do conhecimento. O conhecimento em si mesmo é exclusivo de todo juízo de valor (que não “de valor epistemológico”) enquanto a ética, por essência não-objetiva, está sempre excluída do campo do conhecimento.
Esta distinção radical, colocada como um axioma, é que, em definitivo, criou a ciência […] Acontece, porém, que essas duas categorias estão inevitavelmente associadas na ação, inclusive no discurso. Para permanecermos fiéis ao princípio, julgaremos portanto que todo discurso (ou ação) só deve ser considerado como significante, como autêntico, se (ou na medida em que) explicita ou conserva a distinção das duas categorias; em que os valores e a verdade, associados mas não confundidos, revelam seu inteiro significado ao homem atento que experimenta sua ressonância. Em contrapartida, o discurso inautêntico em que as duas categorias são amalgamadas e confundidas só pode conduzir aos contrassensos mais perniciosos, às mentiras mais criminosas, ainda que inconscientes.
Ed. du Seuil, 1970, pp. 187 a 190. ↩