[wiki]Henri Poincaré[/wiki], Dernieres Pensées, 1924, pp. 223-247.
Esta ciência dos costumes não é uma moral; nem o será jamais; não pode substituir-se à moral, como um tratado de fisiologia da digestão não pode fazer as vezes de um bom jantar. [Poincaré]
Na segunda metade do século XIX houve quem imaginasse criar uma moral científica. Não lhes bastava celebrar a virtude educadora da ciência, o partido que a alma humana tira para o aperfeiçoamento próprio do comércio da verdade olhada frente a frente. Contavam que a ciência pusesse as verdades morais acima de toda contestação, como os teoremas de matemática e as leis enunciadas pelos físicos.
As religiões podem ter grande império sobre as almas crentes, mas nem todos são crentes; a fé impõe-se apenas a alguns, a razão haveria de impor-se a todos. Deveríamos recorrer à razão, embora não à do metafísico, cujas construções são brilhantes, mas efêmeras como bolas de sabão com que nos divertimos um instante e logo se desfazem. Só a ciência edifica solidamente; edificou a astronomia e a física; hoje a biologia; pelos mesmos processos, amanhã a moral. Suas prescrições haveriam de reinar sem limite, ninguém poderia murmurar contra elas, ninguém pensaria insurgir-se contra a lei moral, como hoje ninguém pensa revoltar-se contra o teorema das três perpendiculares ou a lei da gravitação.
E, de outro lado, havia quem pensasse da ciência todo o mal possível; quem nela visse uma escola de imoralidade. Não apenas por outorgar à matéria lugar excessivo, mas por nos roubar o sentido do respeito, visto só respeitarmos bem as coisas que não temos ousio de olhar. E as suas conclusões não seriam a negação da moral? Como o disse não sei que autor célebre, a ciência extingue as luzes do céu, ou, pelo menos, expurga-as do que têm de misterioso, para as reduzir ao estado de vulgares bicos de gás. Põe a descoberto os truques do Criador, que perde um pouco do seu prestígio; não devemos deixar as crianças ver os bastidores: podem ficar com dúvidas acerca da existência do Papão. Se deixamos os sábios à vontade, não tarda nada acabou-se a moral.
Que havemos nós de pensar das esperanças de uns e dos receios dos outros? Não hesito na resposta: são vãos uns como os outros. Não pode haver moral científica, como também não pode haver ciência moral. E a razão é simples; é uma razão, como direi?, puramente gramatical.
Se as premissas de um silogismo estiverem ambas no indicativo, a conclusão estará também no indicativo. Para que a conclusão possa ser posta no imperativo, será necessário que, pelo menos, uma das premissas esteja no imperativo. Ora os princípios da ciência, os postulados da geometria, estão e só podem estar no indicativo; nesse mesmo modo estão também as verdades experimentais, e na base das ciências não há nem pode haver outra coisa. Por consequência, faça o mais subtil dos dialécticos os malabarismos que quiser com tais princípios, ordene-os e combine-os uns com os outros, tudo quanto daí tirar estará no indicativo. Não terá nunca uma proposição que diga: faz isto, ou não faças aquilo; quer dizer, uma proposição que confirme ou que contradiga a moral. […]
A ciência, largamente entendida, ensinada por mestres que a compreendem e a amam, pode desempenhar papel útil e muito importante na educação moral. Mas é erro atribuir-lhe papel exclusivo. Pode fazer brotar sentimentos benfazejos, susceptíveis de servir de motor moral; mas outras disciplinas também o são e é tolice privarmo-nos da sua ajuda; não são de mais todas as forças reunidas. Há pessoas que não têm a compreensão das coisas científicas; é um fato de observação vulgar que há em todas as turmas alunos que são «bons» em letras e que não são «bons» em ciências. Como é ilusório julgar que, se a ciência não fala à sua inteligência, há-de falar ao seu coração!
Agora o segundo ponto: a ciência, como todo o modo de atividade, não só é susceptível de gerar sentimentos novos, como também é capaz de erguer uma construção nova sobre os sentimentos antigos, sobre os que nascem espontaneamente no coração do homem. Não podemos conceber um silogismo com as duas premissas no indicativo e a conclusão no imperativo; mas podemos imaginá-lo estruturado no tipo seguinte: Faz isto, logo, quando se não faz aquilo, não pode fazer-se isto, portanto, faz aquilo. Tais raciocínios não estão fora do âmbito da ciência. […] Não há nem haverá jamais moral científica no sentido próprio da palavra, mas a ciência pode ser, de maneira indireta, um auxiliar da moral; a ciência latamente entendida não pode deixar de servi-la; só a meia ciência é de temer; em compensação, a ciência não é bastante, porque apenas vê uma parte do homem, ou, se preferis, vê tudo, mas de um só prisma; além disso, não devemos esquecer os espíritos que não são científicos. Por outro lado, os receios desmedidos, como as desmedidas esperanças, afiguram-se igualmente quiméricos; a moral e a ciência, à medida que progredirem, hão-de saber adaptar-se uma à outra.