O texto abaixo de Artur Morão retirado de sua monografia, A técnica como problema filosófico, embora de 1999, recolhe elementos e referências importantes para se pensar uma Filosofia da Técnica.

2. Embora só agora, e sobretudo nos últimos trinta anos, se assista ao esforço de uma aproximação crítica, mais insistente, à realidade técnica, ainda não se constituiu [ou só agora começa a elaborar-se] uma disciplina filosófica a ela concernente. Isso não obsta a que alguns frutos de pensamento se tenham já conseguido. São assim resumidos por F. Rapp1:

a) A tecnologia deve abordar-se filosoficamente de um modo unificado, com uma plena coordenação dos aspectos epistemológicos, éticos, culturais, sociais e metafísicos, com um complemento recíproco entre a análise sistemática e a histórica.

b) A filosofia da técnica reflecte necessariamente a situação epocal da filosofia como um todo, com as suas realizações, os seus fiascos e os problemas em discussão.

c) A tecnologia, longe de criar problemas absolutamente novos, agrava os existentes2.

d) É decerto irrealista exigir um perfeito controlo da tecnologia ou uma integral transformação dos valores, já que a configuração do futuro ou da história está fora do nosso alcance.

e) Em virtude da disparidade ou da quase antinomia entre a mudança tecnológica e a natureza humana relativamente imutável, revelam-se demasiado parciais, na compreensão da dinâmica do progresso tecnológico, as explicações filosóficas unidimensionais e monísticas (como o determinismo naturalista, a livre escolha e quejandos). Requer-se antes para tal entendimento a combinação de múltiplos factores: o nosso impulso biológico para a acção tecnológica, o processo histórico concreto no Ocidente (aliado à secularização e à ideia de progresso)3, o [5] método racional, a vontade de poder, a institucionalização da ciência, a competição econômica, etc.

f) Por fim, os métodos e artefactos tecnológicos ostentam o mesmo carácter alienatório que as instituições sociais e os modelos da vida cultural, com a sua oferta de um enquadramento e dos meios de auto-realização numa época determinada, com as suas coacções específicas4.


  1. Fr. Rapp, “Philosophy of Technology”, in G. Floistadt (Ed.), Contemporary Philosophy, Vol. 2, Haia M. Nijhoff, 1982, p. 403 

  2. Contam-se entre eles o da submissão às condições materiais da vida, a exploração dos recursos, o uso bélico da tecnologia, o conflito entre soluções colectivas e a liberdade do indivíduo. Temas como a possibilidade e a especificidade de uma democracia catódica, o pseudodivertimento dos jogos interactivos, de feição por vezes cretinizante, a invasão crescente do corpo humano pela tecnologia das próteses, a entrada da evolução no estádio tecnocientífico (com a consequente artificialização do corpo através da nanotecnologia) e outros são inéditos, mas serão de todo originais? (Cf. a tal respeito Paul Virilio, L’art du moteur, Paris, Galilée, 1993, pp. 131 e ss. 

  3. Fenómeno, aliás, contingente na nossa história, tal como o aparecimento do cristianismo e das ciências exactas — lembra Kurt Hübner (“Técnica”, in H. Krings, Η. M. Baumgartner, Chr. Wild (Dir.), Conceptos fundamentales de filosofia, Vol. 3, Barcelona, Herder, 1979, p. 469). 

  4. Será, por exemplo, de atribuir aos actuais meios técnicos uma certa anestesia ou intoxicação televisiva, a manipulação mediática que, pela acentuação e pelo reforço do anônimo, nos condena à extrodirecção, acentuando a passividade, enfraquecendo o sentido da realidade e fomentando irresponsavelmente, como substituto da verdadeira vida, a auto-estimulação sensível sob todas as formas? 

Artur Morão