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Foi no século XVII que a palavra “crise” assumiu um significado figurativo, que se tornaria mais político no século XVIII. Uma famosa obra de Paul Hazard, La Crise de la conscience européenne, publicada em Paris em 1935, traça essa crise figurativa, essa crise cultural, precisamente até o final do século XVII, um período de estabilidade e “contemplação”. Esse foi o período em que o espírito clássico, que após as grandes aventuras da Renascença e da Reforma havia reconstituído uma base aparentemente inabalável, de repente viu a ordem em que se baseava ser questionada.
No belo edifício da razão clássica, não histórica e imutável, o espírito do século XVIII introduziu o fermento da crítica e da contestação. Naquela época, gritos de protesto surgiram de todos os lados e tudo foi submetido ao critério de uma razão que, longe de justificar a ordem reinante — seja a dos grandes sistemas filosóficos ou a ordem política de desigualdades e privilégios —, pretendia, ao contrário, destruí-los.
Nas ciências, o pensamento newtoniano desafiou a física cartesiana. Na filosofia, os herdeiros de Locke — em especial Condillac — atacaram a filosofia dominante e substituíram o pensamento dedutivo por uma abordagem mais genética que investigava as origens do conhecimento humano. Mais do que qualquer outro, Hume desafiou a razão ao mostrar a origem empírica do conceito de causalidade e a natureza ilegítima da indução. Nas esferas econômica e política, a inquietação cresceu ao longo do século até o ponto em que, como sabemos, levou ao salto qualitativo representado pela Revolução Francesa, uma mudança geral que desestruturou o sistema existente e substituiu o Ancien Régime por uma nova organização social mais democrática.
Toda crise exige uma crítica. A crise é o momento de maior perturbação: por exemplo, como vimos no caso de uma doença, o momento em que a febre está no auge. Mas é precisamente esse momento decisivo de crise que exige uma análise e um discernimento de suas causas, o que levará — o campo médico é paradigmático aqui — a um diagnóstico e à indicação de um tratamento. O mesmo se aplica às crises econômicas ou culturais e às doenças. A crise histórica e espiritual do final do século XVIII, que anunciou a morte do Ancien Régime e da Era Clássica, encontrou sua solução. Politicamente, ela levou à Revolução Francesa e, após o término desse período de turbulência, a uma nova organização política que levou ao Primeiro Império. Na filosofia, a crise da sistematicidade clássica foi temporariamente resolvida pela crítica kantiana à metafísica. Mas esse foi apenas um primeiro passo, pois a filosofia kantiana ainda deixava o homem — tanto a razão quanto a sensibilidade — em um estado separado. A verdadeira crítica virá com Hegel, para quem, como explicado nas Lições sobre a Filosofia da História, “o homem deve compreender que sua infelicidade é a infelicidade de sua própria natureza, que a separação e a discórdia são parte integrante dessa natureza ”66. A dialética hegeliana nasce, portanto, da crise histórica e espiritual e das múltiplas contradições da época que a gerou. Ela se apresenta como uma solução para essa crise e essas contradições no sentido de que, longe de se contentar em sofrê-las ou procurar negá-las, ela as integra como elementos necessários do processo histórico. É a experiência adquirida nos tormentos da crise, no desgosto e nas contradições espirituais que constitui a própria vida do espírito. Assim, a história como um todo se torna uma sucessão incessante de crises e momentos críticos.