Stiegler1994
Se há uma lacuna entre a tecnologia contemporânea e a cultura, é porque esta última não foi capaz de integrar uma nova dinâmica de objetos técnicos, o que cria uma desarmonia entre o “sistema técnico” e os “outros sistemas” que o compõem: “A cultura de hoje é a cultura antiga, incorporando como padrões dinâmicos o estado das técnicas artesanais e agrícolas dos séculos passados” (MEOT).
Ajustar a cultura à tecnologia significa levar em conta os “padrões dinâmicos” da tecnologia atual e abandonar aqueles derivados de uma realidade que agora desapareceu. Significa também admitir que uma dinâmica técnica precede a dinâmica social e se impõe a ela. Analisar os novos padrões dinâmicos e compreender a necessidade de a dinâmica técnica industrial ter precedência sobre outros aspectos sociais são as tarefas do conhecimento que possibilitarão articular a relação entre o homem e o todo técnico. Não se trata da competência tradicional do trabalhador ou do engenheiro-empresário, cuja relação com as máquinas é muito próxima ou muito egoísta: trata-se de lidar com a tecnologia da mesma forma que a sociologia ou a psicologia. Há nos objetos técnicos uma dinâmica que não é obra da alma ou da sociedade humana, mas que, como eles, desempenha um papel decisivo no movimento do desenvolvimento humano e deve ser estudada por si mesma. Essa dinâmica dos objetos, como tecnologia industrial, é uma ciência das máquinas e, como tal, será chamada de mecanologia.
“O que reside nas máquinas” certamente nada mais é do que ‘a realidade humana, o gesto humano fixado e cristalizado em estruturas que funcionam’. Mas o objeto técnico industrial, embora feito pelo homem, é, no entanto, o resultado de uma inventividade que vem do próprio objeto técnico. É nesse sentido, do qual resulta a indeterminação de seu funcionamento, e não sob a categoria de automação, que podemos falar de uma autonomia da máquina: uma autonomia de sua gênese. Essa análise vai mais longe, ao afirmar uma dinâmica tecno-lógica, do que a tese da tendência técnica que supera a vontade de indivíduos e grupos sujeitos às regras da evolução técnica decorrentes tanto das leis da física quanto de uma intencionalidade humana universal que não tem lugar aqui. Dar uma explicação não antropológica da dinâmica técnica por meio do conceito desse processo é recusar-se a considerar o objeto técnico como uma ferramenta, um meio, e defini-lo “em si mesmo”. Uma ferramenta é caracterizada por sua inércia. Mas a inventividade do objeto técnico é um processo de concretização por meio da sobredeterminação funcional. Essa concretização é a história do objeto técnico, dando-lhe “sua consistência ao final de uma evolução, provando que ele não pode ser considerado um utensílio puro[78]”. O objeto técnico industrial não é inerte. Ele tem sua própria lógica genética, que é seu “modo de existência”. Não é o resultado da atividade humana, nem é uma disposição do homem, que meramente toma nota de seus ensinamentos e os executa. Os ensinamentos da máquina são invenções no sentido antigo: exumações.
Há elementos, indivíduos e conjuntos técnicos. Os elementos são as ferramentas, os órgãos separados; os indivíduos implementam os elementos; os conjuntos coordenam os indivíduos. A técnica industrial é caracterizada por uma transformação de indivíduos técnicos, o que permite compreender a gênese e o fracasso da atual relação entre homem e máquina. O drama da tecnologia moderna começou no século XVIII com uma fase de otimismo. Depois veio a crise, com o advento da tecnologia industrial que explorava os recursos da máquina termodinâmica. Não foi a máquina que substituiu o homem: foi o homem que, até a Revolução Industrial, supriu a ausência de máquinas. Entretanto, o surgimento da máquina-ferramenta, como um novo indivíduo técnico, privou o homem tanto de sua função quanto de seu trabalho[79]. No entanto, um novo otimismo está surgindo no século XX com a máquina cibernética, que se diz produzir negentropia. Mais profundamente do que a destituição de poder da máquina, que faz com que o homem perca seu lugar como um indivíduo técnico, é a ameaça da entropia que torna possível a angústia com que o homem experimenta a evolução técnica industrial. Por outro lado, o otimismo final é justificado pela referência à ideia de vida, porque a evolução técnica aparece como um processo de diferenciação, a criação de ordem, a luta contra a morte.
Com a máquina, começa a surgir uma lacuna entre tecnologia e cultura, porque o homem não é mais o “portador de ferramentas”. Para reconciliar a cultura e a tecnologia, precisamos pensar sobre o significado da “máquina portadora de ferramentas”, o que ela significa para si mesma e o que significa para o lugar do homem. Nossa época, que exige um repensar dessa nova relação, traz consigo a evidência da positividade da tecnologia, na medida em que ela se torna um regulador, que também é a essência da cultura. “A realidade técnica, que se tornou um regulador, pode ser integrada à cultura, que é, em essência, um regulador[80].