KASTRUP (2014) – A VISÃO DE MUNDO ATUAL E SUAS IMPLICAÇÕES
KASTRUP, Bernardo. Why materialism is baloney: how true skeptics know there is no death and fathom answers to life, the universe and everything. 1. publ ed. Winchester: Iff Books, 2014.
A natureza fundamental e a influência pervasiva das visões de mundo
- Uma visão de mundo constitui um conjunto estruturante de ideias e crenças fundamentais sobre as quais o indivíduo estabelece sua relação consigo mesmo e com a totalidade da existência, oferecendo respostas provisórias a questões ontológicas essenciais sobre a identidade, a origem, a natureza do universo e o significado da inserção humana no teatro da existência, sendo, portanto, o aspecto determinante que dita se a vivência subjetiva será impregnada de significado e esperança ou marcada pela vacuidade e depressão.
A formação dessa perspectiva individual ocorre em estreita interdependência com o zeitgeist cultural, uma vez que a sociedade, através da educação, da mídia e das interações cotidianas, bombardeia incessantemente o indivíduo com mensagens normativas sobre o que é real, possível ou credível, tornando virtualmente impossível para alguém inserido no contexto moderno desenvolver uma visão de mundo imparcial e crítica sem um esforço consciente para dissipar a névoa cultural e acessar a experiência direta.
- O materialismo metafísico ocidental consolidou-se como a visão de mundo nuclear que, sutil e irresistivelmente, permeia as expectativas, os sistemas de valores e as reações subconscientes da sociedade contemporânea, exercendo influência hegemônica até mesmo sobre aqueles que professam crenças religiosas ou espirituais, os quais, paradoxalmente, manifestam um terror da morte e um apego à materialidade que denotam uma convicção visceral implícita de que a existência se encerra com a dissolução biológica.
A prevalência dessa perspectiva materialista impulsiona a obsessão cultural pela acumulação de bens e o sucesso financeiro, estabelecendo uma simbiose com o sistema econômico vigente ao motivar o trabalho excessivo e o consumo de bens desnecessários, fundamentada na crença não examinada de que, se apenas a matéria existe, a única finalidade concebível da vida reside na obtenção de recursos materiais, projetando-se assim valores numinosos sobre objetos inanimados.
Estudos etnográficos e a superação dos imperativos biológicos
- A suposição de que o medo da morte é um imperativo genético intransponível é refutada por evidências etnográficas, como o caso da tribo Zuruaha na Amazônia brasileira, cuja visão de mundo internalizada sustenta que a alma, ou asoma, se reúne aos parentes falecidos após a morte física, uma crença tão profundamente enraizada que, entre 1980 e 1995, a vasta maioria das mortes entre adultos nessa comunidade foi causada por suicídio voluntário em resposta a frustrações cotidianas.
Este fenômeno demonstra que sistemas de crenças culturais, quando não expostos à hegemonia do materialismo ocidental, possuem a capacidade de suplantar programações biológicas de autopreservação, evidenciando que a relação humana com a finitude é predominantemente uma questão de cosmovisão e não apenas de determinação genética, visto que os Zuruaha encaram a morte como uma simples transição ou mudança de localidade, desprovida da angústia de aniquilação que caracteriza a psique ocidental moderna.
A dinâmica psicossocial da elite intelectual e o consenso científico
- A validação social desempenha um papel crucial na manutenção dos sistemas de crenças, sendo que na contemporaneidade essa validação emana primariamente da elite intelectual, composta majoritariamente por cientistas, nos quais a sociedade deposita sua confiança devido à impossibilidade de qualquer indivíduo abarcar isoladamente a vastidão de evidências e detalhes técnicos produzidos pelo avanço do conhecimento.
Ocorre que os próprios especialistas dependem de validação coletiva interna para formar suas convicções, operando dentro de uma dinâmica de grupo onde o consenso emerge organicamente e, uma vez estabelecido, passa a ser reforçado e protegido contra dissidências, criando um ambiente onde o questionamento dos paradigmas vigentes é desencorajado para evitar o retorno ao caos epistêmico, conforme elucidado pelas análises de Thomas Kuhn sobre as revoluções científicas.
Distinção categórica entre modelagem científica e ontologia metafísica
- É imperativo distinguir o materialismo enquanto metafísica das teorias científicas enquanto modelos, pois o método científico limita-se a estudar padrões e regularidades observáveis da natureza — o comportamento dos fenômenos — permitindo a criação de modelos matemáticos preditivos e avanços tecnológicos, mas sem oferecer acesso à natureza intrínseca ou à essência daquilo que é modelado.
A ciência opera necessariamente através de explicações relacionais, definindo um fenômeno em termos de suas diferenças relativas a outro — tecidos em termos de células, células em termos de moléculas, cargas positivas em relação a negativas —, sendo, portanto, incapaz de elucidar o que uma partícula ou entidade é em si mesma, fundamentalmente, fora desse quadro de referências comparativas.
- A confusão entre a eficácia preditiva da ciência e a compreensão ontológica da realidade assemelha-se a acreditar que a habilidade de uma criança em vencer um jogo de computador implica no conhecimento da arquitetura de hardware e software subjacente; assim como o jogador manipula elementos na tela sem compreender os circuitos da máquina, a ciência manipula os fenômenos dentro do jogo da realidade sem acessar a essência que o sustenta, a qual é objeto de investigação da filosofia e não da física experimental.
O problema difícil da consciência e as falhas do materialismo
- O materialismo postula que a realidade é constituída exclusivamente por partículas materiais ocupando o espaço-tempo, sendo a consciência um subproduto acidental de configurações complexas dessas partículas, destinada a dissipar-se com a morte; contudo, essa visão enfrenta o intransponível problema difícil da consciência, que consiste na impossibilidade lógica de deduzir qualidades subjetivas de experiência — como a vermelhidão do vermelho ou o calor do fogo — a partir de propriedades quantitativas abstratas como massa, spin ou carga elétrica.
Diferentemente de fenômenos emergentes físicos, como dunas de areia cujas formas podem ser deduzidas do comportamento dos grãos e do vento, não há ponte explicativa que permita inferir a emergência da subjetividade a partir de constituintes supostamente inconscientes e mortos, tornando a consciência uma anomalia inexplicável dentro do paradigma materialista, ao contrário de computadores cujos cálculos complexos ocorrem sem qualquer acompanhamento experiencial interno.
Panpsiquismo como consequência lógica e reductio ad absurdum
- Diante da impossibilidade de explicar a emergência da consciência a partir de matéria insenciente, alguns filósofos materialistas, como Galen Strawson, veem-se forçados a adotar o panpsiquismo, a tese de que a consciência é uma propriedade fundamental e onipresente da matéria, implicando absurdamente que objetos inanimados como termostatos e elétrons possuem algum grau de vida interior ou experiência subjetiva.
Essa tentativa de salvar o materialismo resulta em uma forma moderna de animismo que projeta consciência sobre toda a natureza sem qualquer justificativa empírica, violando o princípio da parcimônia ao postular uma explosão de entidades conscientes inobserváveis apenas para sanar uma deficiência teórica, diferindo fundamentalmente da inferência de consciência em outros seres humanos e animais, a qual se justifica pela analogia de comportamentos e estruturas biológicas.
A realidade alucinada e o argumento evolutivo contra o materialismo
- O materialismo contemporâneo implica necessariamente que o mundo percebido durante a vigília é uma alucinação construída pelo cérebro, uma cópia interna gerada dentro do crânio que corresponde a um suposto mundo exterior abstrato e incolor de campos eletromagnéticos ao qual jamais se tem acesso direto, levando à conclusão bizarra de que o crânio real que contém a mente é maior e mais vasto do que todo o universo estelar observável.
Essa duplicação da realidade — um mundo interno fenomenal e um mundo externo abstrato — é autrefutada pela teoria da evolução, pois a seleção natural favorece a sobrevivência e não a precisão das representações internas; pesquisas em redes neurais artificiais demonstram que sistemas que distorcem e simplificam a realidade para focar em informações acionáveis para a sobrevivência superam aqueles que tentam criar representações fiéis e completas.
- Consequentemente, se o materialismo e a evolução fossem ambos verdadeiros, o cérebro humano teria evoluído para gerar um modelo de mundo fundamentalmente distorcido e incompleto, o que significa que o próprio raciocínio humano e a ciência produzida por esse cérebro não seriam confiáveis para revelar a verdade sobre a natureza da realidade, invalidando assim o próprio materialismo que depende da confiabilidade dessa percepção para se sustentar — se o materialismo está certo, não se pode confiar nele.