KASTRUP (2019) – UMA SOLUÇÃO ONTOLÓGICA PARA O PROBLEMA MENTE-CORPO

KASTRUP, Bernardo. The Idea of the World: A Multi-Disciplinary Argument for the Mental Nature of Reality. 1st ed ed. New York: John Hunt Publishing Limited, 2019.

  • A problemática da relação mente-corpo encontra-se indissociavelmente ligada à ontologia, contrapondo o fisicalismo predominante — que postula uma realidade constituída por primitivos ontológicos irredutíveis e não experienciais, dos quais a experiência emerge apenas em configurações complexas — às diversas vertentes do panpsiquismo ascendente, tais como o microexperiencialismo, o panexperiencialismo, o micropsiquismo e o panpsiquismo propriamente dito, conforme definidos por autores como Strawson, Griffin, Rosenberg e Skrbina; estas últimas abordagens sugerem que já existe algo que é ser, ou uma qualidade experiencial, em pelo menos alguns primitivos ontológicos, sendo a consciência complexa o resultado da combinação desses elementos, diferindo entre si quanto à extensão dessa atribuição (apenas alguns ou todos os primitivos) e quanto à inclusão de cognição no nível fundamental.

Contudo, se estipularmos que uma entidade é consciente se, e somente se, houver algo que é ser essa entidade, tanto o fisicalismo quanto o panpsiquismo ascendente concordam que existem entidades físicas ou arranjos que circunscrevem a consciência, ao passo que a ontologia do idealismo estabelece uma distinção fundamental ao positar que todas as entidades físicas e seus arranjos são, na verdade, circunscritos pela consciência, existindo apenas na medida em que estão nela contidos; esta abordagem busca derivar a ontologia mais parcimoniosa e explicativa possível a partir de fatos básicos da realidade, evitando pressupostos metafísicos a priori e distinguindo-se das classificações históricas do idealismo (subjetivo, absoluto, atual) cujas definições de termos como mente e objeto são frequentemente ambíguas.

  • A análise fundamenta-se em quatro fatos básicos da realidade verificáveis pela observação e independentes de teoria: a existência de correlações estreitas entre experiências privadas relatadas e a atividade cerebral observada, conforme os estudos sobre correlatos neurais da consciência de Koch; a constatação de que todos os observadores parecem habitar o mesmo universo, dada a consistência entre os relatos de percepção; a observação de que a realidade se desenrola segundo padrões e regularidades, ou leis da natureza, independentes da volição pessoal; e o fato de que entidades físicas macroscópicas podem ser decompostas em segmentos constituintes microscópicos, como partículas subatômicas.

Apesar dos formidáveis problemas não resolvidos tanto do fisicalismo — apontados por Levine, Chalmers, Nagel e outros — quanto do panpsiquismo ascendente — discutidos por Goff, Coleman e Chalmers —, estas ontologias parecem prima facie mais facilmente reconciliáveis com os quatro fatos citados do que o idealismo, pois o fisicalismo questiona como correlações mente-cérebro poderiam existir se o cérebro não gerasse a experiência, e como poderíamos compartilhar o mesmo sonho ou observar leis independentes se o mundo fosse mental, enquanto o panpsiquismo argumenta que, diante da falha do fisicalismo em deduzir qualidades experienciais de parâmetros físicos, a experiência deve ser um aspecto fundamental dos blocos de construção microscópicos da matéria.

  • Um exame mais aprofundado dos fatos iniciais permite estabelecer cinco fatos adicionais: independentemente do status ontológico do que chamamos de pessoa, existe inevitavelmente aquilo que experiencia (AQUE), uma constatação autoevidente que, como observa Strawson, nem mesmo um budista sensato rejeitaria, sendo AQUE o campo subjetivo de qualidades potenciais ou atualizadas; uma pessoa possui experiências privadas acessíveis a terceiros apenas via relato; a atividade cerebral de uma pessoa é conhecida apenas na medida em que é percebida como experiência; existem correlações estreitas entre a percepção consciente da atividade cerebral (aparência extrínseca) e as experiências privadas da pessoa (visão intrínseca); e o cérebro possui a mesma natureza essencial e pertence à mesma classe ontológica que o restante do universo.

A partir destes fatos, deduz-se que a explicação ontológica mais parcimoniosa é que AQUE e a experiência são da mesma natureza essencial, sendo a experiência um padrão de excitação de AQUE, análogo a ondas que não são distintas da água ou a uma dança que não é distinta do dançarino, evitando assim a necessidade de postular classes ontológicas distintas e contornando o problema difícil da consciência, que estabelece a impossibilidade de deduzir qualidades experienciais de arranjos físicos estruturais ou funcionais, conforme argumentado por Rosenberg, Strawson e Chalmers.

  • Dado que AQUE é um primitivo ontológico incausado e irredutível, e considerando que cérebros vivos, que indubitavelmente experienciam, compartilham a mesma natureza essencial do resto do universo, deve-se inferir que AQUE está associado à totalidade do universo, pois rejeitar tal conclusão implicaria aceitar uma descontinuidade arbitrária na natureza; esta inferência é corroborada por evidências circunstanciais de similaridades estruturais inexplicáveis entre o universo em larga escala e cérebros biológicos, apontadas por Krioukov, bem como pelos argumentos de Schaffer, Horgan e Potrč de que o cosmos forma um sistema emaranhado e um todo irredutível, sugerindo que AQUE é unitário em nível universal.

A aparente contradição entre um AQUE unitário e a existência empírica de experiências privadas e separadas é resolvida pela analogia com a dissociação, uma condição mental reconhecida clinicamente pela Associação Psiquiátrica Americana e descrita por Black e Grant como uma ruptura na integração normal da consciência, memória e identidade; assim, infere-se que os organismos vivos são alteres dissociados do AQUE unitário, formados não por fragmentação ontológica, mas pela dissolução de pontes cognitivas associativas, permitindo a coexistência de centros discretos de autoconsciência dentro de uma mente fundamentalmente única.

  • A legitimidade da dissociação como mecanismo explicativo é sustentada por estudos sobre o Transtorno Dissociativo de Identidade, como os de Strasburger e Waldvogel, que documentaram casos onde a cegueira psicogênica de um alter correspondia à ausência de atividade visual no cérebro, e os de Schlumpf, que demonstraram diferenças claras em exames de fMRI entre pacientes reais e atores simulando a condição, confirmando que a dissociação possui uma aparência extrínseca detectável; além disso, pesquisas de Morton Prince, Kelly e Braude indicam que alteres podem permanecer co-conscientes e disputar o controle executivo, validando a hipótese de que a dissociação top-down no espaço experiencial universal leva à formação de centros de experiência discretos e concorrentes.

Para resolver o problema da fronteira dos sujeitos que experienciam, proposto por Rosenberg, identifica-se a vida metabolizante como a estrutura na natureza que corresponde aos alteres de AQUE, visto que somos as únicas estruturas conhecidas com fluxos dissociados de experiências internas e que a manutenção dessa dissociação parece depender do metabolismo, conforme observado por Kastrup; o comportamento extrínseco de organismos, desde animais até plantas e amebas — cujas complexidades comportamentais são destacadas por Ford e Brenner —, sugere fluxos de experiências internas dissociadas, sendo o processo altamente diferenciado do metabolismo o demarcador natural dessa fronteira dissociativa.

  • As percepções de um alter são redutíveis às experiências de AQUE que incidem sobre a fronteira do alter a partir do exterior, o que implica que a natureza, em seu nível mais fundamental, consiste puramente em visões intrínsecas (pensamentos/experiências), e que o que chamamos de percepção surge apenas com a formação de uma fronteira dissociativa que permite que pensamentos externos estimulem a dinâmica interna do alter.

A objeção de que percepções parecem qualitativamente diferentes de pensamentos e que experiências dissociadas não poderiam interagir causalmente é superada pela observação empírica de que emoções dissociadas afetam pensamentos e comportamentos conscientes, conforme relatado por Lynch, Kilmartin e Eagleman, e pela teoria da interface da percepção de Hoffman, que demonstra que a evolução favorece qualidades perceptivas que maximizam a aptidão em vez de refletir a verdade literal, transformando o ambiente externo em representações codificadas ou ícones na área de trabalho da consciência; adicionalmente, o trabalho de Friston, Sengupta e Auletta sobre o Cobertor de Markov mostra que organismos evoluem para representar estados externos de forma comprimida para minimizar a entropia interna e manter a integridade estrutural, explicando por que nossas percepções não se parecem com os pensamentos universais que as originam.

  • A ontologia idealista proposta explica os quatro fatos básicos da realidade com elegância e parcimônia: as correlações mente-cérebro (Fato 1) e a natureza da atividade cerebral (Fato 7) são explicadas porque a visão intrínseca (experiência) causa a aparência extrínseca (corpo/cérebro), e não o contrário, de modo que a percepção do cérebro é apenas a visualização externa dos processos mentais internos de um alter; o compartilhamento do mesmo universo (Fato 2) decorre da imersão de todos os alteres no mesmo oceano de pensamentos de AQUE; a autonomia das leis naturais (Fato 3) explica-se pelo fato de que a volição pessoal está dissociada da dinâmica do AQUE universal; e a decomposição da matéria em partículas (Fato 4) reflete a natureza das percepções como representações codificadas das menores excitações discerníveis de AQUE.

Esta formulação reduz toda a realidade a um único primitivo ontológico — AQUE ou consciência universal —, superando o fisicalismo por não ser inflacionário (não postula matéria independente da experiência) e por contornar o problema difícil da consciência, evitando a tarefa impossível de reduzir a experiência a abstrações conceituais da própria experiência.

  • Críticas frequentes à ontologia idealista são refutadas mediante esclarecimentos conceituais: os experimentos de Libet sobre a latência da decisão não provam a existência de processos fora da consciência, mas apenas fora da autorreflexão metacognitiva, conforme distinções feitas por Schooler, Tsuchiya e Vandenbroucke, sugerindo que toda mentação é consciente, ainda que não reportável; a ideia de que danos físicos causam alterações mentais baseia-se na premissa falsa de distinção entre físico e experiencial, sendo reinterpretada como a interferência de atividades experienciais externas (aparência física) disruptando experiências internas através da fronteira dissociativa; e a estabilidade das leis naturais não contradiz a natureza mental da realidade, mas reflete arquétipos ou padrões de vibração estáveis na consciência universal, análogos aos modos de excitação de uma superfície, evitando a antropomorfização de atribuir instabilidade humana à mente universal, em consonância com conceitos junguianos.

  • Comparativamente ao panpsiquismo ascendente, a ontologia proposta evita o problema da combinação de sujeitos, que atormenta teorias que tentam explicar como a subjetividade unitária macroscópica emerge da combinação de miríades de micro-sujeitos subatômicos, um processo considerado incoerente por Coleman e Goff; em vez disso, o idealismo propõe a dissociação top-down, um processo clinicamente compreensível e empiricamente evidenciado, situando a subjetividade unitária no nível do organismo inteiro e tratando as partículas subatômicas não como sujeitos, mas como a estrutura discernível das excitações de AQUE, análogo a não confundir as ondulações da água com a água em si.

Em relação à inteligência artificial, a ontologia implica que a consciência é um primitivo incriável e que a chamada consciência artificial exigiria a indução artificial de dissociação na consciência universal, o que equivale à criação de um alter biológico; portanto, tentativas de mimetizar fluxos de informação em substratos de silício, abordadas por Haikonen, limitam-se a reproduzir aspectos formais sem capturar a essência experiencial, constituindo uma ciência de culto à carga na visão de Feynman, de modo que a busca por uma consciência artificial verdadeira reduz-se, em última análise, à busca pela abiogênese, visto que não há razão para crer que interruptores eletrônicos possam constituir a aparência extrínseca de uma vida interior privada.