KASTRUP (2024) – O QUE VÊS NÃO É O QUE APREENDES

KASTRUP, Bernardo. Analytic idealism in a nutshell: a straightforward summary of the 21st century’s only plausible metaphysics. London, UK Washington, DC, USA: iff Books, 2024.

A percepção como painel de instrumentos e não como janela transparente

  • A suposição intuitiva de que a percepção atua como uma janela transparente que revela o mundo tal como ele é em si mesmo, fundamentada na observação de objetos com formas definidas e eventos em locais específicos, deve ser superada pela compreensão de que a fidelidade informativa não requer isomorfismo visual, tal como demonstrado pela analogia de um painel de instrumentos de avião.

  • Sensores de uma aeronave medem estados externos como pressão e velocidade e os apresentam ao piloto de forma codificada através de mostradores, os quais, embora transmitam informações precisas e vitais para a sobrevivência e operação da nave, não possuem qualquer semelhança visual com as nuvens, o fluxo de ar ou o horizonte tridimensional que constituem a realidade externa.

  • Os órgãos sensoriais humanos, incluindo retinas, tímpanos e papilas gustativas, operam de maneira análoga aos sensores da aeronave, coletando medições dos estados ambientais e representando-os na tela da percepção, o que implica que o mundo em si, independente da observação, pode ser tão ontologicamente distinto daquilo que percebemos quanto o céu é distinto dos ponteiros em um painel.

Entropia, evolução e a inviabilidade da percepção direta

  • A hipótese de que a percepção poderia ser uma janela transparente para a realidade é refutada pela termodinâmica, pois se os estados cognitivos internos precisassem espelhar os estados externos do mundo — cuja dispersão ou entropia não possui limite superior a priori —, a entropia interna dos organismos cresceria indefinidamente, resultando na perda da integridade estrutural e na dissolução física do observador.

  • Karl Friston e colaboradores, em publicação nos Proceedings of the IEEE em 2014 intitulada Cognitive dynamics: From attractors to active inference, demonstraram rigorosamente que a percepção atua limitando a entropia dos estados internos através da codificação da informação, de modo semelhante a como um manual de voo ou um painel limitam a complexidade que o piloto deve gerenciar.

  • Paralelamente à termodinâmica, a teoria dos jogos aplicada à evolução por seleção natural, conforme investigado por Donald Hoffman e colaboradores da Universidade da California em Irvine, indica que o aparelho perceptual evoluiu para maximizar a aptidão para a sobrevivência e não para revelar a verdade, uma vez que o acesso direto à realidade bruta resultaria em uma sobrecarga de informações não acionáveis e consequente extinção.

  • A analogia da área de trabalho de um computador ilustra a função da percepção: arquivos, que em sua realidade intrínseca são complexos arranjos de interruptores eletrônicos microscópicos, são representados como ícones coloridos e simples para permitir a interação do usuário; ver a realidade dos bits impediria o uso do sistema, assim como ver a realidade do mundo impediria a sobrevivência biológica, sugerindo que objetos e formas são meros ícones em uma interface gráfica perceptual.

A confusão entre a representação e a realidade ontológica

  • A condição humana assemelha-se à de pilotos que jamais deixaram a cabine de comando e, portanto, confundem o painel de instrumentos com o próprio céu, desenvolvendo uma linguagem e um pensamento estruturados pelos parâmetros do painel — o mundo 'físico' coloquial — e não pela estrutura ontica da realidade exterior.

  • O mundo denominado coloquialmente como 'físico', composto por objetos, cores e formas situados no espaço-tempo, é uma representação cognitiva interna construída pelo aparelho evolutivo humano e não a realidade em si, embora exista inegavelmente um mundo real externo independente que não cessa de existir na ausência de observadores, diferentemente da representação perceptual que depende do ato de observação.

  • A questão sobre a existência da lua quando não observada deve ser respondida distinguindo-se o fenômeno percebido da coisa em si: a lua como disco brilhante e 'físico' é uma representação que deixa de existir sem o observador — tal como a leitura de um mostrador desaparece sem a aeronave —, mas a entidade real que engendra tal representação persiste independentemente, ainda que sua natureza intrínseca não seja 'física' no sentido perceptual.

  • A atribuição de fisicalidade à realidade externa constitui um erro categorial, pois estende as propriedades da representação (o painel) para a coisa representada (o céu), sendo que a realidade, por estar fora da tela da percepção, não pode ser caracterizada pelas qualidades que definem a experiência perceptual 'física'.

A natureza não física dos estados reais e a primazia da mente

  • Estabelece-se uma convenção terminológica onde algo é 'físico' (entre aspas) no sentido coloquial quando constituído por conteúdos da percepção experiencial, enquanto quantidades físicas (sem aspas) são descrições matemáticas relativas criadas para descrever esses estados internos representacionais, e não a realidade externa em si.

  • Uma vez que os estados 'físicos' são representações internas, deduz-se que os estados reais do mundo exterior são não físicos, no sentido de que não são passíveis de descrição exaustiva por quantidades físicas como massa ou comprimento, as quais servem apenas para descrever a interface perceptual.

  • A existência de estados não físicos é empiricamente evidente através dos estados experienciais endógenos, como pensamentos, emoções e intuições, que possuem realidade palpável mas não apresentam propriedades espaciais ou quantitativas como comprimento, massa ou frequência hertziana, servindo como prova de conceito para a existência de uma categoria ontológica não física.

  • A conclusão parcimoniosa, fundamentada no raciocínio analítico de ponta, sugere que, se os únicos exemplos concretos de estados não físicos acessíveis são os mentais, a realidade externa, que se situa além da fisicalidade do painel perceptual, é constituída por estados mentais transpessoais análogos aos nossos, tornando a fisicalidade uma mera representação de uma realidade fundamentalmente mental.