VITA: MEDITAÇÃO DA TÉCNICA - ANTI-TÉCNICA

Meditação da Técnica

José Ortega y Gasset

Tradução e Prólogo de Luís Washington Vita

[b]5. ANTI-TÉCNICA[/b]

A romântica e lírica luta anti-técnica se apresenta sob três aspectos distintos, consubstanciando a mesma delação. A técnica é acusada: a) como anti-social; b) como anti-espiritual; c) como antinatural. É lesiva ao homem e à sociedade, ao espírito e à natureza. Com efeito, o contraste entre o homem e a técnica é o tema preferido do utopismo e messianismo hodiernos. Os autores das mais célebres diagnoses e prognoses sobre a "crise" contemporânea, os profetas da decadência e da morte da civilização mecânica do Ocidente, os defensores da espiritualidade pura, estão todos de acordo no definirem a máquina como o pior inimigo do homem e no apontá-la como a causa direta ou indireta da sua decadência espiritual. O mundo no qual domina a máquina é um mundo sem alma, nivelador, mortificador; é um mundo no qual a quantidade tomou o lugar da qualidade definitivamente e no qual o culto dos valores do espírito foi substituído pelo culto dos valores instrumentais e utilitários . Essa luta anti-técnica começou primeiro entre os porta-vozes dos socialistas utópicos do século XIX, com eles cerrando fileiras os marxistas que viam nas máquinas as grandes "furadoras" de greves. Fourier, por sua vez, critica com violência os excessos do industrialismo. Finalmente, Proudhon, ao estudar a divisão do trabalho, notara que "mais se divide a mão-de-obra, mas aumenta o poder do trabalho, porém, ao mesmo tempo, mais o trabalho se reduz progressivamente a um mecanismo embrutecedor da inteligência" (J. P. PROUDHON, Systhème des contradictions économiques ou Philosophie de la misère, Paris, 1923, pág. 140), pois a seu ver "as máquinas nos prometiam um aumento de riqueza; e o que recebemos foi um aumento de miséria. Elas nos prometiam a liberdade; eu irei provar que elas nos trouxeram a escravidão" (J. P. Proudhon, o. c. págs. 188-9). Nos nossos dias outros economistas e sociólogos insistem na mesma tecla. Para F. Zweig "o progresso tecnológico não conduz necessariamente a uma distribuição mais equitativa das rendas; ou, em outras palavras, o progresso social não avança a par do progresso tecnológico" (F. Zweig, Economia y tecnologia, trad. esp., México, 1944, pág. 32). Onde, porém, a delação contra a máquina atinge seu climax é com Lewis Munford, que afirma que "a máquina apareceu em nossa civilização não para salvar ao homem da servidão ou de formas ignóbeis de trabalho, mas para adaptar, no possível, a servidão a "standards" ignóbeis de consumo, formados entre as aristocracias militares". A vitória do industrialismo é a mais profunda ruptura com o passado, autêntica "nova barbárie", onde o interesse dos homens se transladou dos valores da vida para os valores pecuniários. Era do carvão e dos produtos têxteis: por isso mesmo quem mais sofre é o mineiro e o tecelão: "Viviam e morriam à vista do poço de carvão ou da tecelagem de algodão, nos quais passavam de 14 a 16 horas por dia; viviam e morriam sem memória nem esperança, contentando-se com as migalhas que os mantinham vivos ou com o breve consolo de poder sonhar quando caíam de sono" (LEWIS MUNFORD, Técnica y civilización, trad. esp., vol. I, Buenos Aires, 1945, pág. 205).

No plano espiritual a crítica é ainda mais dramática contra a técnica. Quem inaugura essa cruzada e a alimenta até ao fim de seus dias é Berdiaev. Para ele, a tecnização destrói a beleza da antiga cultura, a individualização, a originalidade; tudo se torna uniformemente coletivo, todas as coisas são fabricadas sob um mesmo estilo, perdendo assim a marca da personalidade. A civilização mecano-técnica é fatal à alma: "O coração suporta mal o contato gelado do metal" (N. BERDIAEV, L'homme et la machine, trad. franc. Paris, 1933, pág. 36). "O mundo se desumaniza, e a máquina não é senão uma projeção desse processo" (N. Berdiaev, o. c. pág. 50). "A técnica substitui o elemento orgânico irracional pelo elemento racional organizado. Mas disto resultam novos fenômenos irracionais na vida social. É por isso que a racionalização da indústria engendra o desemprego, essa calamidade de nossa época" (N. Berdiaev, o. c. pág. 19). Spengler, por sua vez, diz que "com razão foi a máquina considerada como diabólica . Para um crente significa o destronamento de Deus. Entrega ao homem a sagrada causalidade, e o homem a põe em movimento silenciosamente, irresistivelmente, com uma espécie de previdente onisciência"(O. Spengler, La decadência de occidente, trad. esp., vol. IV, Madrid, 1945, pág. 349). Em O Homem e a técnica, escreve: "A criatura se está erguendo contra o seu criador. Assim como dantes o Homem do microcosmos se alçava contra a Natureza, agora a Máquina do microcosmos se revolta contra o Homem Nórdico. O senhor do Mundo se está transformando no escravo da Máquina, que o está forçando — forçando a todos nós, quer percebamos isto, quer não — a seguir o seu curso. Os cavalos arrastam para a morte o vitorioso cujo corpo se despedaça" (O. Spengler, O homem e a técnica, o. c. págs. 124-5). Para Otto Veit, que via na Idade da Técnica uma tragédia, aponta na máquina a raiz de todos os males: "a época da técnica sofre exatamente graças à técnica. E aqui começa o verdadeiro problema: de um lado sabemos que toda a nossa civilização está baseada na técnica, e de outro não conseguimos nos libertar da desagradável sensação de que a técnica sepulta a nossa civilização" (OTTO Veit, Die Tragik des Technischen Zeitalters, Berlin, 1937, pág. 13). Isto porque "no terreno empírico o homem não é livre. Não é livre num mundo governado pela diabólica potência da máquina" (Otto Veit, o.c. pág. 253). Como se safará o mundo de tão terríveis maldições técnicas? Para Berdiaev "a atitude do espírito para com o mundo em geral e, em particular para com a técnica que reina no mundo, deve ser toda outra. A técnica deve ser subordinada ao espírito, a máquina deve ser um instrumento obediente ao homem, um meio. Isto significa a humanização da técnica que tende a se tornar inumana" (N. BERDIAEV, L’homme dans la civilization technique, o. c. pág. 87).

O principal advogado de acusação da técnica como antinatural e estranha à natureza é Spengler, para quem o homo technicus possui uma "alma que avança cada vez mais, num sempre crescente alheamento de toda a Natureza. As armas dos animais de rapina são naturais, mas o punho armado do homem com a sua arma artificialmente feita, meditada e escolhida, não é natural. Aqui começa a 'Arte' como conceito contraposto à 'Natureza'. Cada obra do homem é artificial, antinatural, desde a produção do fogo até as criações que, nas Culturas superiores, são especificamente consideradas 'artísticas'. O Homem arrebatou à Natureza o privilégio da criação. A 'vontade livre' é em si nada menos que um ato de rebeldia. O homem criador se libertou dos laços da Natureza e com cada criação nova se afasta cada vez mais dela, torna-se cada vez mais seu inimigo. Isso é 'História Universal', a história de uma dimensão fatal que se ergue, incoercível, sempre crescente, entre o mundo do homem e o universo — a história de um rebelde que cresce para erguer a mão contra a própria mãe" (O. Spengler, O homem e a técnica, o. c. pág. 132).