Meditação da Técnica
José Ortega y Gasset
Tradução e Prólogo de Luís Washington Vita
[b]2. CONCEITO DE TÉCNICA[/b]
A conclusão orteguiana é problemática e sua meditação, preliminar. Nem poderia ser diferente, se o pensador madrilenho quisesse permanecer, como egregiamente permanece, numa atmosfera filosófica, problematicística, pois a missão principal da filosofia, para não dizer a única, é a problematização de tudo o que se lhe apresenta, seja da realidade, seja das proposições sobre ela, isto é, a única coisa que pode fazer a filosofia é ver os problemas como problemas, ou seja, examinar a significação de todos os problemas e de todo o problemático. E não há nada mais problemático do que qualquer das dimensões do humano, uma das quais é a técnica, cujo sentido, vantagens, danos e limites foram o tema de Ortega em suas preleções de 1933, antes da utilização da energia nuclear, da astronáutica, da automação, da psicologia experimental . Claro está que problema não é apenas uma incógnita a determinar, mas a necessidade na qual encontra o nosso pensamento explicação de um objeto qualquer (real, ideal, axiológico, metafísico). E o primeiro problema filosófico da técnica está na idéia de "criação" ensejada pelo aparecimento de novas matérias (petroquímica, fibras sintéticas), alterando a própria vivência imediata que o homem tem do que é substância ou coisa. E isto de modo especial quando nos ocorre que esta noção de substância surgiu na Grécia, há mais de vinte séculos, nos exorcismos das primeiras "técnicas" significativas dos helenos. Com efeito, a pedra ou a madeira aparecem como alguma coisa dotada de propriedades determinadas, de um ser fixo e constante — de uma consistência invariável e peculiar — que por isso pode servir para certos fins: construir uma casa, cruzar o mar flutuando, aquecer mediante combustão; a isto é que os gregos chamaram substância. Ora, as "substâncias" produzidas pela técnica atual são exatamente o inverso: longe de ter propriedades fixas e inerentes, que permitem certa aplicação, se "inventam" para satisfazer determinadas necessidades que o homem sente, e logo aparecem relativizadas, referidas a uma função humana, que é o que lhes confere sua substantividade. Por isso, na designação destes produtos, costuma intervir um "para", que revela sua índole funcional.
Reconhecida a problematicidade filosófica de nosso tema, vejamos o que se deve entender por técnica. O termo grego, oriundo da raiz sânscrita Tvaksh (fazer, aparelhar), designava para os helenos toda atividade forjadora, como habilidade de manipulação e produção de objetos materiais, habilidade de factura, implicando capacidade específica de execução, industriosidade, antes que verdadeira e lídima atividade criadora. Deste modo, "técnica" significa originàriamente "arte", isto é, arte ou maneira de fazer uma coisa; procedimento. Contudo, a técnica se distingue tanto da arte, no sentido genuíno da palavra, como do método, com o qual é freqüentemente confundida, já que a técnica de uma ciência é a arte de executar as operações manuais que seus métodos exigem; e o método, ao contrário, é um conjunto de operações lógicas. Evidentemente, técnica não é apenas o conhecimento enquanto serve de base à ação prática, ou seja, o conhecimento aplicado (e, neste caso, seria uma espécie de praxiologia), mas é, em sentido geral, a própria ação ou atividade prática, enquanto aplicação de um conhecimento; e, em sentido específico, é a atividade prática enquanto utiliza uma ou mais leis naturais, de modo que a verificação destas valha como resultado da própria atividade . Portanto, a técnica é o conjunto das habilidades cujo auxílio permite aos homens o aproveitamento da natureza para fins humanos; como tal, é uma autêntica característica do homem e só do homem, nascendo com ele graças ao seu espírito inventivo. Por isso a técnica progride e tem uma história, o que não ocorre com os animais "construtores", que não inventam e não progridem, e sua "técnica" não é inventiva nem suscetível de desenvolvimento. Consoante Spengler, "o tipo abelha desde que existe tem construído seus favos como o faz agora, e há de continuar a construí-los assim até a sua extinção. Os favos pertencem à abelha como a forma de suas asas e a cor de seu corpo" (Oswald Spengler, O homem e a técnica, trad. bras., Porto Alegre, 1941, pág. 51.). É com o homem que as técnicas se desenvolvem completamente, pois o homem, pela forma de seu corpo e pela aptidão de seu cérebro, não é um simples repetidor de processos industriais da vida, mas um inovador, um prodigioso inventor de mecanismos novos, diferentes daqueles que a natureza, por instinto, associou à própria forma do corpo do animal e ao seu ritmo (P. DUCASSÉ, Histoire des techniques, Paris, 1948, pág. 6.).