VITA: MEDITAÇÃO DA TÉCNICA - O PROBLEMA

Meditação da Técnica

José Ortega y Gasset

Tradução e Prólogo de Luís Washington Vita

  1. O PROBLEMA

Não obstante Ortega y Gasset ter afirmado que os livros que lera sobre a técnica — "todos indignos, por certo, de seu enorme tema", admitindo apenas uma exceção, o de Gotl-Lilienfeld, "insuficiente também no que se refere ao problema geral da técnica", em verdade o enorme tema fora disputado com alguma dignidade antes de 1933, quando o criador da Escola de Madrid o meditara no seu curso levado a efeito na Universidade de Verão de Santander. No início da belle époque, 1877, quando os feéricos proscênios dos álacres can-cans eram iluminados com bico-de-gás e os atropelamentos das ruas causados por sonolentos cocheiros de tílburis, E. Kapp publicava sua Philosophie der Technik; e precisamente no término da Idade Festiva, 1914, Eberhard Zschimmer publicava outra Philosophie der Technik. Em verdade, o problema é tão antigo quanto a própria filosofia e se inexiste explicitamente nos pré-socráticos, está flagrante em Aristóteles quando afirmara que a técnica é alguma coisa característica do homem, alguma coisa superior à experiência, mas inferior ao raciocínio, ao saber, que é justamente aquilo que a técnica faz possível ao propiciar ao homem o atendimento de seus desejos mais veementes. Daí afirmar Spengler — num livro que é anterior à Meditação orteguiana, pois Der Mensch und die Technik é de 1931 — que a técnica é a tática da vida. Conseqüentemente, uma teoria da técnica exige uma teoria da vida humana, sem a qual o fato da técnica resulta incompreensível. Isto porque, no fundo, a técnica é um recurso; portanto, não somente o emprego dos meios que a vida encontra diante de si sem nenhum esforço, como também, e de modo todo especial, a direção destes meios, a produção e administração dos artifícios que possam conduzir a uma realização dos fins essenciais de cada existência e da vida humana em geral. Na vida do homem a técnica é uma presença ubíqua, submergente, avassaladora, não se limitando apenas à produção e emprego dos recursos para a subsistência material da vida, mas atinge a cada uma das ações humanas. Assim sendo, é preciso reconhecer que existe além de uma técnica da produção de benefícios materiais, uma técnica da arte, uma técnica do saber, uma técnica da salvação. Nessa linha de pensamento se insere a Meditação da técnica de Ortega y Gasset sendo então, o presente ensaio que estamos prolongando, alguma coisa muito mais do que exprime seu título. Em resumidas palavras, é uma extensão de seu pensamento filosófico sobre o ser e a vida do homem a propósito da técnica.

Com efeito, parte Ortega da idéia corrente de que o objeto da técnica é satisfazer as "necessidades humanas", mas por intermédio de uma análise deste conceito chega à conclusão de que o homem é "o ser para o qual o supérfluo é necessário", e a técnica, "a criação de possibilidades sempre novas que não existem na natureza do homem". O homem inventa suas necessidades, seu programa vital, e daí a diferença de programas vitais e de técnicas para cumpri-los que ocorreram na história e que Ortega descreve juntamente com os estádios da evolução da técnica, até chegar à atual, a técnica da técnica, na qual esta se fez independente, convertendo-se na técnica pura da invenção como tal. Consoante Ortega y Gasset, é preciso distinguir na evolução histórica da técnica três estádios bem diferenciados: a) a técnica do acaso, própria do homem ágrafo, acessível a todos os membros da comunidade e quase confundida com o repertório dos atos naturais; b) a técnica do artesão, própria da Antigüidade e da Idade Média, patrimônio de certas comunidades como um modo de fazer diferente dos demais; c) a técnica do técnico, tal como se oferece em nossa época, com intervenção da máquina e uma grande diferença não somente entre o técnico e o não-técnico, mas entre o técnico, o artesão e o operário. Neste último estádio priva a própria técnica sobre as técnicas especiais, a invenção sobre o conjunto de atos necessários para realizar uma determinada finalidade. Na busca de uma resposta à pergunta — que é a técnica? — Ortega, quase à maneira de Platão nos diálogos "socráticos", constrói sua escada cujos degraus ou pisos são os conceitos. O primeiro deles é que os atos técnicos são específicos do homem sendo seu conjunto a técnica, definida como a reforma que o homem impõe à natureza em vista da satisfação de suas necessidades, que por sua vez são impostas pela natureza ao homem e este responde impondo-lhe uma mudança. A técnica, porém, não é o que o homem faz para satisfazer suas necessidades, é a reforma da natureza feita através dos atos técnicos que não são aqueles em que fazemos esforços para satisfazer diretamente nossas necessidades, mas aqueles em que dedicamos o esforço, primeiro, para inventar e, depois, para executar um plano de atividades que nos permita: a) assegurar a satisfação das necessidades, inclusive elementares; b) obter essa satisfação com o mínimo esforço; c) criar-nos possibilidades completamente novas produzindo objetos que não existem na natureza do homem (navegar, voar, falar com o antípoda mediante o telégrafo ou a radiocomunicação, etc). Portanto, a reforma da natureza ou técnica, como toda mudança ou mutação, é um movimento com seus dois termos, a quo ead quem. O termo a quo é a natureza conforme está aí; para modificá-la é preciso fixar o outro termo, para o qual conformar-se-á. Este termo ad quem é o programa vital do homem. Contudo, a tendência que afirma existir apenas uma técnica — a atual euro-americana — é por demais pretenciosa, já que essa técnica é mais uma entre outras do panorama vastíssimo e multiforme das humanas técnicas e já que a cada projeto e módulo de humanidade corresponde a sua técnica. Daí poder-se periodizar a evolução da técnica tendo em vista sua relação com o homem, ou seja, considerando a idéia que o homem foi tendo de sua técnica, não desta ou de outra determinada, mas da função técnica em geral. Partindo deste princípio são distinguidos os três enormes estádios na sua evolução: a) técnica do acaso; b) técnica do artesão; e c) técnica do técnico, a primeira ocorrendo no homem ainda como natureza, a segunda em conseqüência do reconhecimento de que existem homens que possuem um repertório peculiar de atividades que não são, sem mais nem menos, as gerais e naturais em todo homem; são os artesãos, e a terceira é o momento em que o homem adquire a consciência suficientemente clara de que possui uma certa capacidade por completo distinta das rígidas, imutáveis, que integram sua porção natural ou animal e vê que a técnica não é um acaso, como no estádio primitivo, nem um certo tipo dado e limitado de homem — o artesão; que a técnica não é esta técnica nem aquela determinada e, portanto, fixas, mas precisamente um manancial de atividades humanas, em princípio ilimitadas. Não há dúvida quanto à quase ilimitação de possibilidades na técnica material contemporânea. Mas a vida humana não é somente luta com a matéria, é também luta do homem com sua alma. Será possível vislumbrar no mundo ocidental um claro repertório de técnicas da alma? Com essa pergunta encerra Ortega sua meditação.