Meditação da Técnica
José Ortega y Gasset
Tradução e Prólogo de Luís Washington Vita
[b]6. TÉCNICA E NATUREZA[/b]
Evidentemente, tais e tantas críticas são exageradas, apaixonadas e, mais do que tudo, unilaterais. Só vêem uma face da moeda, omitindo a outra. No entanto, no próprio século XIX tiveram os anti-técnicos contra si também um espírito de escol, Reuleaux, o grande morfólogo das ferramentas. Por outro lado, Dessauer, filósofo católico, vê na técnica uma mensagem divina que "libertou os homens de uma parte das atribuições que não eram dignas do homem, que empregava só as forças mais baixas do homem com tal prepotência, que impediam às outras de se desenvolver. Mas não lhe bastou libertar o homem e chamá-lo para atividades mais dignas: aumentou de maneira gigantesca a medida do trabalho possível" (F. Dessauer, Filosofia delia técnica, trad. ital., Brescia, 1945, págs. 113-4). Para Dessauer há de fato na técnica "a virtude criativa de Deus, que enriquece o mundo por meio do espírito do homem" (F. Dessauer, o. c. pág. 41). Lewis Munford, menos comprometido com a teologia, diz que "as ferramentas e utensílios usados durante grande parte da história do homem eram, no fundamental, extensões de seu próprio organismo. Não tinham — e, o que é ainda mais importante, não pareciam ter — uma existência independente. Mas, ainda que constituíssem uma parte íntima do trabalhador, reagiam sobre suas capacidades, aguçando seus olhos, apurando sua habilidade e ensinando-lhe a respeitar a natureza do material com o qual estava trabalhando. Graças à ferramenta o homem encontrou-se em harmonia mais íntima com seu ambiente, não só porque o capacitou para modificá-lo, mas porque ao mesmo tempo fez-lhe reconhecer os limites de suas capacidades. Quando sonhava era todo-poderoso, mas quando se encontrava no domínio da realidade via-se obrigado a reconhecer o peso da pedra, fracionando as demasiadamente pesadas para que fosse possível o seu transporte. Tanto o carpinteiro como o ferreiro, o oleiro e o camponês escreveram, ainda que não as assinando, muitas páginas no livro da sabedoria. E nesse sentido a técnica foi sempre um instrumento de disciplina e de educação. Um cavernícola sobrevivente podia, aqui e ali, desafogar sua cólera quebrando as rodas de seu carro que emperrou na lama, assim como podia chicotear o animal que relutava em andar. Mas a grande maioria da humanidade aprendeu, pelo menos durante o período do documento escrito, que não é possível intimidar ou convencer com afagos certas partes do ambiente. Para dominá-las é necessário aprender as leis de seu comportamento em lugar de querer, com não pouca petulância, impor os desejos de cada um. E, assim, a erudição e a tradição da técnica, por empírica que fosse, mostrava certa tendência a configurar uma realidade objetiva" (L. Munford, o. c. vol. II, págs. 99-100).
Longe está a técnica, portanto, de ser uma violência contra a natureza. Submete-se às leis de seu comportamento, sem nada impor. De resto, a invenção, na sua própria essência, é descoberta, no sentido pleno desta palavra. Todos os novos fatos, relações, elementos, são novos somente como descoberta; eles já existiam na natureza, limitando o inventor tão apenas a torná-los conhecidos, descobrindo-os, já que na imensa maioria de nossos atos entramos sem perceber nos moldes preestabelecidos. Daí não se poder conceber a técnica em desacordo com as leis da natureza. Uma obra técnica se define pela reunião de três critérios num único: a) conformidade com a natureza; b) elaboração; c) ordenação para um fim. O pressuposto de toda criação técnica é o conhecimento das leis naturais, isto é, consoante Dessauer: "O técnico procura obter a síntese entre as leis naturais, que particularmente se apresentam nos materiais empregados e nos fins a que tendem, A adaptação daqueles nestes é quase sempre trabalhosa, às vezes extremamente difícil. Para atingir uma certa perfeição na construção da locomotiva, centenas de homens estão trabalhando há um século em torno de problemas sintéticos deste gênero e passaram pouco a pouco da solução menos perfeita a outras melhores" (F. DESSAUER, o. c. pág. 24). A luz maior, porém, projetada sobre a antinomia homem-técnica, iluminando-a, vem dos holofotes da filosofia existencialista. Para Abbagnano, por exemplo, "a técnica é indispensável ao homem, mas não concerne propriamente ao homem. Todo objetivo humano, de paz ou de guerra, exige instrumentos e máquinas; mas instrumentos e máquinas nada valem sem homens que saibam e queiram utilizá-los. E a natureza destes homens não é problema de técnica científica” (Nicola Abbagnano, Introduzione all’esistenzialismo, Torino, 1947, pág. 184). Portanto, homem e máquina se conjugam .