VITA: MEDITAÇÃO DA TÉCNICA - TÉCNICA E SOCIEDADE

Meditação da Técnica

José Ortega y Gasset

Tradução e Prólogo de Luís Washington Vita

[b]3. TÉCNICA E SOCIEDADE[/b]

Entendida a técnica, em sentido largo, como o emprego de instrumentos e de procedimentos específicos para a melhor e mais eficiente execução de uma obra ou tarefa humana, é evidente que ela nasce com a própria história do homem a partir do momento em que ele consegue obter da natureza aquilo que deseja, fabricando os primeiros instrumentos. Mas, qual teria sido o instrumento matriz, origem dos restantes, cujo ponto culminante viriam a ser as chamadas máquinas-ferramentas, as máquinas que fabricam máquinas? A resposta só pode ser uma: a mão humana. Com efeito, a máquina nada mais é que o prolongamento do utensílio que, por sua vez, prolonga a mão do homem. Assim, a técnica não nasceu na Idade Moderna, com a aplicação das máquinas na produção industrial, pois essa produção tecnológica é a culminância de um processo cujas raízes partem do mais recôndito da história do homem. Este processo começou quando o homem, pela primeira, utilizou-se de uma pedra como arma de defesa e ataque, ou como instrumento. Entre aquela pedra e a máquina mais complexa da indústria moderna há uma diferença de grau, não de qualidade.

Com efeito, a atitude erecta libertou as mãos do homem primevo e as primeiras ferramentas foram apenas o prolongamento destas mãos. O desenvolvimento cerebral dispensou o homem da especialização morfológica, e a sua mão, "exteriorização ativa" deste cérebro, serviu para a defesa, para o ataque e para todas as necessidades práticas ditadas pelo interesse vital. Desta interpretação resultaria uma confirmação da teoria da projeção espontânea de L. Weber, consoante a qual o instrumento primitivo foi apenas o prolongamento, a imitação do órgão. Por isso a máquina é uma projeção, não mais das partes terminais dos membros, mas da própria articulação que une estes membros entre si e o tronco, permitindo-lhes executar, em conexão uns com os outros, movimentos determinados, com exclusão dos outros. É precisamente aí que parece revelar-se a intenção do agente. Portanto, há uma mecânica e uma física nestas energias musculares e suas extensões: é a técnica. O homo faber se antecede ao homo sapiens, existindo assim uma evolução que vai das propriedades superficiais às propriedades profundas das coisas, e onde, pouco a pouco, a "arte" e a "ciência" se destacam da técnica. Delgado de Carvalho resume a gênese da técnica nestes termos: na primeira fase de seu desenvolvimento, as invenções aumentam o poder das mãos; é criada a "ferramenta", simples projeção do órgão; na segunda fase, é visado um efeito defensivo sob o impulso da força humana, é aumentado o poder de nossos sentidos: é criado o "instrumento"; na terceira fase, há uma combinação do engenho humano, é facilitado o deslocamento no espaço, o efeito é mecânico: é criada a "máquina". Nesta fase é que mais se desenvolve a utilização das forças naturais (Cf. DELGADO de CARVALHO, Sociologia, Rio de Janeiro, 1931, pág. 237).

Todavia o homo faber, apenas e só, seria um absurdo sem sua outra dimensão: o homo loquens. O ato da mão só adquire sentido com a linguagem. O homem só veio a ser homem com a gênese da mão, essa arma ímpar no mundo da vida móvel, surgindo com ela a marcha, a postura erecta — e o instrumento, pois a mão inerme, por si só, não tem utilidade. Exige uma arma para se transformar, ela mesma, em arma. Assim como os instrumentos foram modelados de acordo com a forma da mão, a mão tomou também a configuração do instrumento. Mas, tendo em vista a divisão da história numa série de "atos" separados e bem ordenados e de "enredos" que se desenvolvem paralelamente uns aos outros, Spengler é de opinião que para esse processo coletivo a condição prévia indispensável era um meio — a linguagem (O. Spengler, o. c, pág. 60 e pág. 78). Deste modo, o homem, como faber, apropria-se das coisas exteriores para delas se servir e manifesta a sua iniciativa modelando a natureza, para seu próprio uso; como loquens, compreende e transmite os símbolos da linguagem articulada, já que, mediante a linguagem, o homem pode ligar o passado ao presente. A mão e a linguagem, eis a humanidade, porquanto o que marca o fim da história zoológica e o princípio da história humana é, por assim dizer, a invenção da mão e da linguagem. A longa incerteza, porém, e a descontinuidade do progresso humano testemunham, como já foi observado, os esforços que foram necessários ao homem para reconhecer o demonstrável e o verificável, isto é, para conquistar a objetividade. É que, reduzido somente à sua destreza, o homo faber, sem meios de comunicar, justificar e perpetuar seguramente suas iniciativas, não teria conhecido senão sucessos sem continuidade e teria visto abortar o seu esforço numa cega rotina. O homo loquens, por sua vez, confinado no seu gênio lingüístico, ter-se-ia construído um mundo todo verbal, onde, libertado da pressão do real, senão da autoridade das representações coletivas, sua imaginação teria divagado a seu capricho. As palavras não têm somente o privilégio de significar o seu objeto, mas também de criá-lo, quando acontece não existir. Assim, as palavras, os sentidos que o homem lhes forjou, as compatibilidades e as incompatibilidades imaginadas entre os seres, as coisas e as propriedades, de que passam por símbolos, enquadram muitos pseudo-problemas, dos quais alguns sobrecarregam ainda, com seu peso inútil, não somente a filosofia, mas também a ciência. Isolados, abandonados a si mesmos e a seus próprios recursos, nem o homo faber, nem o homo loquens teriam podido atingir o conhecimento . Para dar o homo sapiens, foi necessária a sua íntima e estreita colaboração, que não se estabeleceu senão muito lentamente e através de muitos obstáculos e compromissos. Só a palavra permitia à atividade técnica transmitir e assegurar o seu progresso; só o progresso das técnicas constrangem a palavra a abandonar as suas ilusões e a limitar o mundo verbal a este papel de substituto, de equivalente manejável do mundo real, no qual é indispensável ao livre e pleno exercício do pensamento (Fernando de Azevedo, Princípios de sociologia, São Paulo, 1935). Resumidamente, temos: se o homem, na luta contra as forças de destruição, ultrapassou os animais mais próximos na escala zoológica, é que: a) é capaz de não somente se adaptar às coisas, mas de adaptar as coisas a ele, transformando-as; b) consegue pela linguagem, nascida da vida social, transmitir a sua experiência à geração seguinte, acumulando, assim, meios não só de sobrevivência mas de sobrevivência em maior conforto. Ou, nas palavras de Ciro Tassara de Pádua, "para o homem a técnica é um veículo que lhe facilita viver melhor" (Ciro Tassara de Pádua, O homem e a técnica, Curitiba, 1942, pág. 9).

Caracterizando-se a técnica como autêntico processo civilizatório, confere ela ao homem um crescente domínio sobre a natureza ao organizar o saber técnico. Daí dizer Ayala: "O que caracteriza este tipo de saber situado na base do processo civilizatório é sua índole instrumental, em virtude da qual as aquisições a que dá lugar são puramente objetivas, no sentido de impessoais e, portanto, neutras e essencialmente transmissíveis . A este seu fundamental caráter se deve, exatamente, a unidade do processo integrado sobre tais aquisições que, em verdade, surgiram no seio de complexos culturais alheios entre si. Enlaçam-se, não obstante, por sua instrumentabilidade; unificam-se em sua condição de meios para fins, e em tal condição reside seu universalismo. Se reconhecemos como um elemento do processo civilizatório a acha de sílex encontrada nas escavações arqueológicas, é porque podemos perceber nela, de modo direto e imediato, seu caráter de utensílio: revela-se-nos como um instrumento, produzido dentro da racionalidade que une meios e fins. É possível, e até parece certo, que à forma desse utensílio vinculara o homem primitivo que o elaborou determinadas propriedades mágicas, que a nós nos fogem, às quais, talvez, poderemos chegar pelo caminho de inferências intelectuais desviadas; mas seu caráter de instrumento se nos apresenta de modo imediato, declarando nossa fundamental identidade com o remoto ser humano que, mediante essa acha, nos revela a presença da inteligência do fundo dos milênios. Estamos unidos a ela pela cadeia do progresso técnico, da qual esse tosco instrumento constitui ura importante elo. No outro extremo, o automóvel ou o fuzil automático, construídos pelo homem da civilização ocidental, é utilizado sem nenhuma inibição pelo homem primitivo 'colonizado', sem necessidade de fazer prévio abandono de sua própria atitude cultural; e, em termos gerais, a experiência mostrou com quanta agilidade podem os membros de uma cultura adquirir as técnicas desenvolvidas noutras e sobre pressupostos espirituais diversos . Por complicado que seja um artefato, a racionalidade instrumental a que corresponde o faz acessível a qualquer compreensão humana, em raro contraste com as próprias atitudes culturais que, não obstante os empenhados esforços, não são jamais compreendidas integralmente de fora" (F. Ayala, Tratado de sociologia, vol. II, Buenos Aires, 1949, págs. 200-1). Esta essencial transmissibilidade do saber técnico é, ao mesmo tempo, a condição que lhe permite organizar-se num processo único, dando-lhe o reconhecido caráter acumulativo que dele se costuma apregoar. A objetividade do rendimento pleno, que está à disposição de toda gente e que repousa na racionalidade funcional, permite que, sobre os elos dos já adquiridos e incorporados, se possa prosseguir, adquirindo e incorporando indefinidamente, numa colaboração de toda a espécie humana ao longo do tempo. Por isso, quando Ogburn formula a questão acerca das causas que determinam um novo invento, afirma com razão que não basta, para explicá-lo, a necessidade social do mesmo, nem que, em todo caso, seria suficiente se faltassem os elos técnicos imediatamente anteriores, que o fazem possível. Porque a invenção técnica — diz Ducassé — "como a invenção artística, supõe sempre um ato de audácia e de liberdade, uma ruptura, pelo menos relativa, no curso de uma tradição" (P. Ducassé, o. c, pág. 8).

Contudo, se a necessidade social não é suficiente para explicar um novo invento, em última instância ela dá utilidade à coisa feita num primeiro momento desinteressadamente. O exemplo da bomba atômica é o mais frisante e, ao mesmo tempo, o mais dramático. Nascida em laboratórios e gabinetes de pesquisas puras, sua utilização foi forçada pelas circunstâncias da guerra. O invento pode ser gratuito, pode ser mesmo lúdico, como o caso do éter, mas sua utilização efetiva é sempre ensejada por uma necessidade social. Como se vê, a questão é muito controvertida. Para Malinowski a técnica moderna surgiu como um imperativo das necessidades, das quais o homem não podia fugir. A isto, acrescenta Tassara de Pádua: "A técnica é uma criação provocada pelas necessidades humanas; logo, só podemos estudá-la se a entrosarmos dentro da vida social, com o conseqüente estudo da interação social e dos efeitos de uma sobre a outra" (C. T. DE PÁPVA, O.C. pág. 13). Colocada a técnica nestes termos é óbvio que ela exige uma distinção de suas duas conhecidas etapas ou momentos: invento e aplicação. A primeira corresponde à idéia tecnológica, ao invento novo, ao descobrimento, ao aperfeiçoamento. A segunda corresponde à sua aplicação na indústria. Entre ambas há um longo caminho a percorrer. Por vezes o caminho é tão grande que o invento permanece no reino das idéias, por sua prematuridade, como no exemplo famoso de Denis Papin que descobriu o vapor no século XVII, o qual, entretanto, só no século XIX foi pela primeira vez aplicado pelo engenheiro Fulton. Isto porque, em última instância, a esfera do invento não está determinada pelo pensamento científico abstrato, mas pelas necessidades da vida. De resto, a história revela que há períodos mais favoráveis aos inventos do que outros, o que confirmaria a teoria de L. Weber sobre as alternativas dos períodos de progresso técnico. Ensejado pela necessidade, o progresso técnico, por sua vez, cria novas necessidades, imprimindo-se assim uma aceleração constante. Aliás, essa aceleração constante do processo técnico é perfeitamente visível no seu aspecto de técnica material. Neste terreno, a mudança se inicia na pré-história com passos muito distanciados entre si, como o demonstra a permanência dos mesmos implementos de pedra com suas formas inalteráveis durante lapsos não menores a 30 000 anos. Destes lapsos não se pode falar ainda como de vida histórica, e só em medida muito escassa de verdadeira humanidade. Daí reconhecer Franz Boas que a repetição do mesmo ato sem mudança, geração após geração, deixa a impressão de um instinto biològicamente determinado, impressão essa corrigida pelo próprio antropólogo alemão ao observar que tais atos são transmitidos por aprendizado, "de maneira análoga ao que praticam também os animais mediante o exemplo e a imitação". De então para cá a técnica introduziu seus progressos com aceleração constante e crescente, por efeito da acumulação e, com ela, do estímulo cada vez maior oferecido pela situação técnica a novos descobrimentos, até entrar na fase vertiginosa que se inicia na primeira metade do século XIX, que não deixou de aumentar sua velocidade até aos nossos dias. O mecanismo aqui é análogo ao da lei dos juros compostos, comportando-se a invenção como processo acumulativo: um passou depois do outro. O progresso técnico, portanto, se apresenta como acumulação de aquisições materiais e conhecimentos objetivos no quadro de uma cultura. Essa acumulação tem um caráter lógico e irreversível. Cada fase se baseia nas experiências anteriores. As invenções de alimentos, vestimentas, ferramentas e instrumentos, habitações, armas, práticas mágicas, ídolos, instrumentos de música e jogos, formam correntes cujos elos constituem fases na evolução de cada objeto. Essas fases são irreversíveis: o arado supõe a invenção da estaca de cavar; o uso de animais de tração repousa sobre as experiências combinadas de caçadores e agricultores. Por isso pôde concluir Thurnwald: "O processo social corresponde ao progresso material, onde estruturas sociais se ligam, funcionalmente, ao progresso técnico" (R. Thurnwald, Die menschliche Gesellschaf, in ihre etho-soziologischen Grundlagen, vol. IV, Berlin, 1931-35, pág. 268). Participando da controvérsia e, ao que parece, superando-a, escreve Max Scheler: "A técnica é antes a que tira ativamente de si, desperta e provoca as necessidades industriais de novos meios de produção, como claramente prova, por exemplo, o processo inteiro da moderna indústria elétrica. Sob hipótese alguma a especial técnica científica do experimento e da medida caiu do céu para produzir a ciência, como parece opinar Labriola. Estes instrumentos são apenas teoria transposta na matéria, teoria corporalizada, por assim dizer" (Max Scheler, Sociologia del saber, trad. esp., Madrid, 1935, págs. 140-1).