Agamben2002
É uma sorte que o barão Jakob von Uexküll, hoje considerado um dos maiores zoólogos do século XX e um dos fundadores da ecologia, tenha se arruinado na Primeira Guerra Mundial. Já antes, como livre pesquisador, primeiro em Heidelberg, depois junto à Estação Zoológica de Nápoles, ele havia conquistado uma discreta reputação científica devido a suas pesquisas sobre a fisiologia e o sistema nervoso dos invertebrados. Mas, uma vez privado de seu patrimônio familiar, foi forçado a abandonar o sol meridional (mantendo porém uma casa de campo em Capri, onde veio a morrer em 1944 e onde, em 1926, Walter Benjamin se alojou por alguns meses) e a ingressar na Universidade de Hamburgo, fundando o Institut für Umweltforschung, que lhe proporcionou a celebridade.
As investigações de Uexküll sobre o ambiente animal são contemporâneas tanto da física quântica quanto das vanguardas artísticas. Como estas, elas exprimem o abandono sem reservas de qualquer perspectiva antropo-cêntrica nas ciências da vida e a radical desumanização da imagem da natureza (não deve surpreender, portanto, que desempenhassem uma forte influência tanto sobre o filósofo do século XX que mais se esforçou para separar o homem do vivente — Heidegger — quanto sobre aquele — Gilles Deleuze — que procurou pensar o animal de modo absolutamente não antropomórfico). Onde a ciência clássica via um único mundo, que compreendia dentro de si todas as espécies viventes e hierarquicamente ordenadas, das formas mais elementares aos organismos superiores, Uexküll, em vez disso, estabeleceu uma infinita variedade de mundos perceptíveis, todos igualmente perfeitos e ligados entre si como uma gigantesca partitura musical, e, embora incomunicantes e reciprocamente exclusivos, em cujo centro estão pequenos seres familiares e ao mesmo tempo distantes chamados Echinus esculentus, Amoeba terricola, Rhizostoma pulmo, Sipunculus, Anemonia sulcata, Ixodes ricinus etc. Por isso, Uexküll define como “passeios por mundos incognoscíveis” suas reconstruções do ambiente do ouriço-do-mar, da ameba, da água-viva, do verme-do-mar, da anêmona-marinha, do carrapato — estes são seus nomes comuns — e de outros minúsculos organismos que ele privilegiava, porque sua unidade funcional com o ambiente parecia extremamente distante daquela do homem e dos animais considerados superiores.
Com demasiada frequência — afirma ele nós imaginamos que as relações que um determinado sujeito animal mantém com as coisas de seu ambiente têm lugar no mesmo espaço e no mesmo tempo daquelas que o ligam aos objetos de nosso mundo humano. Essa ilusão repousa sobre a crença em um único mundo no qual se situariam todos os seres viventes. Uexküll mostra que tal mundo unitário não existe, assim como não existe um tempo e um espaço iguais para todos os viventes. A abelha, a libélula ou a mosca que observamos voar em torno de nós em um dia de sol não se movem no mesmo mundo em que nós as observamos, nem dividem conosco — ou entre elas — o mesmo tempo e o mesmo espaço.
Uexküll começa por distinguir com cuidado o Umgebung, o espaço objetivo no qual vemos mover-se um ser vivente, do Umwelt, o mundo-ambiente que é constituído de uma série mais ou menos ampla de elementos que ele chama de “portadores de significados” (Bedeutungsträger) ou de “marcas” (Merkmalträger), que são os únicos que interessam ao animal. O Umgebung é, na realidade, o nosso próprio Umwelt, a que Uexküll não atribui nenhum privilégio particular e que, como tal, pode também variar segundo o ponto de vista do qual o observamos. Não existe uma floresta como ambienteado: existe uma floresta-para-o-guarda-florestal, uma floresta-para-os-caçadores, uma floresta-para-os-botânicos, uma floresta-para-os-viajantes, uma floresta-para-o-amigo-da-natureza, uma floresta-para-o-lenhador e, por fim, uma floresta de fábula na qual se perde a Chapeuzinho Vermelho. Até um mínimo detalhe — por exemplo, o caule de uma flor-do-campo —, quando considerado na qualidade de portador de significado, constitui a cada vez um elemento diferente em um ambiente diverso; por exemplo, de que se o observe no ambiente de uma garota que colhe flores para fazer um ramalhete pregado ao seu vestido; no da formiga que se serve dele como trajeto ideal para conseguir seu alimento no cálice da flor; naquele da larva da cigarra que lhe perfura o canal medular, utiliza-o, pois, como uma bomba para construir as partes fluidas de seu casulo aéreo e, por fim, no da vaca que simplesmente o mastiga e engole para se alimentar.
Cada ambiente é uma unidade fechada em si mesma, que resulta da seleção prévia de uma série de elementos ou de “marcas” no Umgebung, que, por sua vez, não é senão o ambiente do homem. A primeira tarefa do pesquisador que observa um animal é reconhecer os portadores de significado que constituem o ambiente. Estes não são, no entanto, objetiva e factualmente isolados, mas constituem uma estreita unidade funcional — ou, como prefere dizer Uexküll, musical — com os órgãos receptores dos animais destinados a perceber a marca (Merkorgan) e a reagir a ela
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(Wirkorgan). Tudo ocorre como se o portador de significado externo e seu receptor no corpo do animal constituíssem dois elementos de uma mesma partitura musical, quase duas notas no “teclado sobre o qual a natureza segue a sinfonia extratemporal e extraespacial da significação”, sem que seja possível dizer como nunca dois elementos tão heterogêneos tenham podido se ligar tão intimamente.
Considere-se, sob essa perspectiva, uma teia de aranha. A aranha não sabe nada sobre a mosca, nem pode tomar-lhe as medidas, como faz uma costureira para confeccionar um vestido para a sua cliente. E todavia ela determina a amplitude das malhas da sua teia segundo as dimensões do corpo da mosca e confere a resistência dos fios na exata proporção da força do choque do corpo da mosca em voo. Os fios radiais são, além disso, mais sólidos que os circulares, porque estes — que, ao contrário dos primeiros, são recobertos por um líquido viscoso — devem ser suficientemente elásticos para poder aprisionar a mosca e impedi-la de voar. Quanto aos fios radiais, são lisos e secos, porque a aranha se serve deles como um atalho para se atirar sobre sua presa e a envolver definitivamente em sua invisível prisão. O fato mais surpreendente é que os fios da teia são exatamente proporcionais à capacidade visual do olho da mosca, que não pode vê-los e voa, portanto, para a morte sem perceber. Os dois mundos perceptivos da mosca e da aranha são absolutamente incomunicáveis e, todavia, estão tão perfeitamente de acordo que se diria
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O ABERTO — Ο HOMEM E O ANIMAL
que a partitura original da mosca, que também se pode chamar de sua imagem original ou seu arquétipo, age sobre a da aranha de tal modo que a teia que esta tece pode ser qualificada como “moscai”. Embora a aranha não possa de forma alguma ver o Umwelt da mosca (Uexküll afirma, formulando um princípio que haveria de ser consagrado, que “nenhum animal pode entrar em relação com um objeto como tal”, mas somente com os próprios portadores de significado), a teia exprime a paradoxal coincidência dessa cegueira recíproca.
As pesquisas do fundador da ecologia seguem poucos anos às de Paul Vidal de La Blache sobre as relações entre as populações e seu ambiente (o Tableau de la géographie de la France é de 1903) e as de Friedrich Ratzel sobre o Lebensraum, o “espaço vital” dos povos (a Politische Geographie é de 1897), que viriam revolucionar profundamente a geografia humana do século XX. E não está excluído que a tese central de Sein und Zeit [Ser e tempo] sobre o ser-no-mundo (in-der-Welt-sein) como estrutura humana fundamental possa ser lida de alguma maneira como uma resposta a todo esse âmbito problemático que, no início do século, modifica essencialmente a relação tradicional entre o vivente e o seu mundo-ambiente. Como é sabido, as teses de Ratzel, segundo as quais todo povo é intimamente ligado ao seu espaço vital como a sua dimensão essencial exerceram uma notável influência na geopolítica do nazismo. Essa proximidade é marcada na biografia intelectual de
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Uexküll em um episódio curioso. Em 1928, cinco anos antes do advento do nazismo, esse cientista tão sóbrio escreveu um prefácio aos Grundlagen des neunzehnten Jahrhunderts, de Houston Chamberlain, hoje considerado um dos precursores do nazismo.