Deleuze (Diferença e Repetição)
Em tudo isto, o único perigo é confundir o virtual com o possível. Com efeito, o possível opõe-se ao real; o processo do possível é, pois, uma “realização”. O virtual, ao contrário, não se opõe ao real; ele possui uma plena realidade por si mesmo. Seu processo é a atualização. É um erro ver nisso apenas uma disputa de palavras: trata-se da própria existência. Cada vez que colocamos o problema em termos de possível e de real, somos forçados a conceber a existência como um surgimento bruto, ato puro, salto que se opera sempre atrás de nossas costas, submetido à lei do tudo ou nada. Que diferença pode haver entre o existente e o não existente, se o não existente já é possível, recolhido no conceito, tendo todas as características que o conceito lhe confere como possibilidade? A existência é a mesma que o conceito, mas fora do conceito. Coloca-se, portanto, a existência no espaço e no tempo, mas como meios indiferentes, sem que a produção da existência se faça num espaço e num tempo característicos. A diferença só pode ser então o negativo determinado pelo conceito: seja a limitação dos possíveis entre si para se realizarem, seja a oposição entre o possível e a realidade do real. O virtual, ao contrário, é a característica da Ideia; é a partir de sua realidade que a existência é produzida, e produzida em conformidade com um tempo e um espaço imanentes à Ideia.
Em segundo lugar, o possível e o virtual se distinguem ainda porque um remete à forma de identidade no conceito, ao passo que o outro designa uma multiplicidade pura na Ideia, que exclui radicalmente o idêntico como condição prévia. Enfim, na medida em que o possível se propõe à “realização”, ele próprio é concebido como a imagem do real, e o real como a semelhança do possível. Eis por que se compreende tão pouco o que a existência acrescenta ao conceito, duplicando o semelhante pelo semelhante. É esta a tara do possível, tara que o denuncia como produzido depois, fabricado retroativamente, feito à imagem daquilo a que ele se assemelha. A atualização do virtual, ao contrário, sempre se faz por diferença, divergência ou diferenciação. A atualização rompe tanto com a semelhança como processo quanto com a identidade como princípio. Nunca os termos atuais se assemelham à virtualidade que eles atualizam: as qualidades e as espécies não se assemelham às relações diferenciais que elas encarnam; as partes não se assemelham às singularidades que elas encarnam. A atualização, a diferenciação, neste sentido, é sempre uma verdadeira criação. Ela não se faz por limitação de uma possibilidade pré-existente. É contraditório falar de “potencial”, como o fazem certos biólogos, e definir a diferenciação pela simples limitação de um poder global, como se este potencial se confundisse com uma possibilidade lógica. Atualizar-se, para um potencial ou um virtual, é sempre criar linhas divergentes que correspondam, sem semelhança, à multiplicidade virtual. O virtual tem a realidade de uma tarefa a ser cumprida, assim como a realidade de um problema a ser resolvido; é o problema que orienta, condiciona, engendra as soluções, mas estas não se assemelham às condições do problema. Bergson também tinha razão ao dizer que, do ponto de vista da diferenciação, mesmo as semelhanças que surgem nas linhas de evolução divergentes (por exemplo, o olho como órgão “análogo”) devem ser, primeiramente, referidas à heterogeneidade do mecanismo de produção. E é num mesmo movimento que é preciso reverter a subordinação da diferença à identidade e a subordinação da diferença à similitude. Mas, o que é essa correspondência sem semelhança ou diferenciação criadora? O esquema bergsoniano, que une a Evolução Criadora a Matéria e Memória, começa pela exposição de uma gigantesca memória, multiplicidade formada pela coexistência virtual de todas as seções do “cone”, sendo cada seção como que a repetição de todas as outras, distinguindo-se destas apenas pela ordem das relações e pela distribuição dos pontos singulares. Em seguida, a atualização desse virtual mnemonico aparece como a criação de linhas divergentes, cada uma correspondendo a uma seção virtual e representando uma maneira de resolver um problema, mas encarnando, em espécies e partes diferenciadas, a ordem de relações e a distribuição de singularidades próprias à seção considerada [^BERGSON é o autor que vai mais longe na crítica do possível, mas é também aquele que mais constantemente invoca a noção de virtual. Desde o Essai sur les données immédiates de la conscience, a duração é definida como uma multiplicidade não atual (Editions du Centenaire, p. 57). Em Matière et mémoire, o cone das lembranças puras, com suas seções e seus “pontos brilhantes” sobre cada seção (p. 310), é completamente real, conquanto seja somente virtual. E em L’évolution créatrice, a diferenciação, a criação das linhas divergentes, é concebida como uma atualização, cada linha de atualização parecendo corresponder a uma seção do cone (cf. p. 637).]. No virtual, a diferença e a repetição fundam o movimento da atualização, da diferenciação como criação, substituindo, assim, a identidade e a semelhança do possível, que só inspiram um pseudomovimento, o falso movimento da realização como limitação abstrata.