As discussões sobre a filosofia da mente geralmente começam coni a suposição de que todos sempre souberam como dividir o mundo em mental e físico — que essa distinção é de senso comum e intuitiva, mesmo se entre dois tipos de “substância”, material e imaterial, isso seja filosófico e desconcertante. Assim, quando Ryle sugere que falar de entidades mentais é falar de disposições de conduta, ou quando Smart sugere que isso é falar de estados neutros, eles marcam dois pontos contra si mesmos. Mas para que, se o behaviorismo ou o materialismo são verdadeiros, deveria haver algo como essa distinção intuitiva?
Parecemos não ter dúvida de que dores, disposições de ânimo, imagens, e sentenças que “relampejam diante da mente”, sonhos, alucinações, crenças, atitudes, desejos e intenções, tudo isso conta como “mental”, enquanto que as contrações do estômago que causam dor, os processos nervosos que a acompanham e tudo mais a que pode ser atribuída uma localização concreta dentro do corpo contam como não-mentais. Nossa classificação decidida sugere que não apenas temos clara intuição do que seja a “mentalidade”, mas que esta tem algo a ver com não-espacialidade e com a noção de que mesmo se o corpo fosse destruído as entidades ou estados mentais poderiam de algum modo permanecer latentes. Mesmo se descartamos a noção de “substância mental”, mesmo se abandonamos a noção de res cogitans como tema de predicação, parecemos capazes, não obstante, de distinguir mente de corpo, e fazê-lo de um modo mais ou menos cartesiano.
Essas pretensas intuições servem para manter vivo algo como o dualismo cartesiano. Os filósofos pós-wittgensteinianos que se opõem ao behaviorismo e ao materialismo tendem a admitir com Wittgenstein e Strawson que, em algum sentido, não existe nada além do organismo humano e que devemos desistir da noção desse organismo como constituido por um bocado de res cogitans não-espacialmente associado com um bocado de res extensa. Mas, eles dizem, permanece a intuição cartesiana de que a distinção mental-físico é intransponível por meios empíricos, que um estado mental não é mais semelhante a uma disposição do que o é a um neurônio, e que nenhuma descoberta científica pode revelar uma identidade. Essa intuição parece-lhes suficiente para estabelecer uma brecha intransponível. Mas esses filósofos neodualistas são confundidos por suas próprias conclusões, uma vez que, embora suas intuições metafísicas pareçam cartesianas, não lhes é claro se têm o direito de ter coisas como “intuições metafísicas”. Tendem a sentir desagrado pela noção de um método de conhecimento sobre o mundo anterior â ciência empírica e intocável por esta.
Nessa situação é tentador para o dualista tornar-se linguístico e começar a falar sobre “vocabulários diferentes” ou “descrições alternativas”. Esse jargão sugere que a intuição dualística em questão não é mais que uma das diferenças entre modos de falar sobre o mesmo fenômeno, e assim parece levar de algo como o dualismo para algo como a teoria do duplo aspecto de Espinosa. Mas a pergunta “duas descrições de quê?’ toma difícil manter essa posição. Replicar “duas descrições de organismos” parece correto até que perguntamos: “Os organismos são físicos?”, ou: “Há algo mais em relação a organismos, mesmo organismos humanos, do que a descrição efetiva e possível de suas partes?” Geralmente os neo-dualistas concedem com prazer a Ryle toda uma abundância de estados mentais, e dizem que crenças, desejos, atitudes e intenções (para não mencionar habilidades, virtudes e temperamentos) são apenas modos de falar sobre organismos, suas partes e os movimentos efetivos e possíveis dessas partes. (Mas podem insistir, segundo Brentano e Chisholm, que nenhuma condição ryleana necessária e suficiente pode ser proporcionada). Hesitam, porém, quando chegam a dores, imagens mentais e pensamentos ocorrentes — estados mentais de curta duração que, por assim dizer, parecem mais semelhantes a eventos que a disposições. E têm razão em hesitar. Pois bastaria, para que a diferença entre dualismo e materialismo se desvanecesse, que se dissesse que descrever um organismo como dolorido é só um modo de falar sobre um estado de suas partes. Essas partes, lembremos, devem ser partes físicas, pois, uma vez que kantianizamos e strawsonizamos Descartes, a noção de “parte mental” já nem sequer parece fazer sentido. O que mais poderia pedir um defensor da identidade mente-corpo senão a admissão de que falar sobre como alguém se sente é apenas um modo alternativo de relatar como são as partes respectivas (presumivelmente neurônios) de sua anatomia?
Assim, temos o seguinte dilema: ou os neodualistas devem construir um relato epistemológico sobre como sabemos a priori que as entidades se enquadram em duas espécies ontológicas irredutivelmente distintas, ou devem expressar esse dualismo de algum modo que não se apoie nem na noção de “cisão ontológica” nem na de “descrição alternativa”. Mas, antes de começar a esboçar modos de resolver esse dilema, devemos olhar mais de perto para a noção de “espécie ontológica” ou “cisão ontológica”. Que espécie de noção é essa? Dispomos de quaisquer outros exemplos de cisões ontológicas? Algum outro caso no qual saibamos a priori que nenhuma inquirição empírica pode identificar duas entidades? Sabemos, talvez, que nenhuma inquirição empírica pode identificar duas entidades espácio-temporais que tenham localizações diferentes, mas esse conhecimento parece trivial demais para ser relevante. Existe algum outro caso no qual saibamos a priori sobre tipos ontológicos naturais? Os únicos exemplos em que consigo pensar são as distinções entre finito e infinito, entre humano e divino, e entre particular e universal. Nada, intuímos, poderia cruzar essas divisões. Mas tais exemplos não parecem ajudar muito. Somos inclinados a dizer que não sabemos o que seria preciso para que algo infinito existisse. Se tentamos esclarecer a noção ortodoxa de “divino”, parece que temos ou uma concepção meramente negativa, ou então uma explicada em termos das noções de “infinitude” e “imaterialidade”. Como a referência a infinitude explica o obscuro pelo mais obscuro, resta-nos a imaterialidade. Sentimo-nos vagamente confiantes em que, se pudesse existir, o infinito, como o universal, poderia ser exemplificado apenas pelo imaterial. Se faz algum sentido falar da existencia de universais, pareceria que eles devem existir ¡materialmente, e é por isso que nunca podem ser identificados com particulares espácio-temporais. Mas o que significa “imaterial”? É a mesma coisa que “mental”? Mesmo sendo difícil ver na noção de ser “físico” algo mais do que na de ser “material” ou “espácio-temporal”, não é claro que “mental” e imaterial sejam sinônimos. Se fossem, então disputas como aquela entre conceitualistas e realistas sobre o status dos universais iriam parecer ainda mais tolas do que já são. Não obstante, o oposto de “mental” é “físico” e o oposto de “imaterial” é “material”. “Físico” e “material” parecem sinônimos. Como dois conceitos distintos podem ter sinônimos opostos?
Nesse ponto podemos ficar tentados a recorrer a Kant e explicar que o mental é temporal mas não espacial, enquanto que o imaterial — o mistério além dos limites do sentido — não é espacial nem temporal. Isso parece dar-nos uma bela e clara distinção tripartida: o físico é espácio-temporal; o psicológico é não-espacial, mas temporal; o metafísico não é espacial nem temporal. Assim podemos considerar a explicação da aparente sinonimia de “físico” e “material” como uma confusão entre “não-psicológico” e “não-metafísico”. O único problema é que Kant e Strawson forneceram argumentos convincentes à afirmação de que só podemos identificar estados mentais como estados de pessoas espacialmente localizadas.1 Uma vez que renunciamos à “substância mental”, somos forçados a levar esses argumentos a sério. Isso faz com que quase fechemos um círculo, pois agora queremos saber qual o sentido de dizer que alguns estados de uma entidade espacial são espaciais e alguns não o são. Não adianta que nos seja dito que estes são seus estados funcionais — pois a beleza, a compleição, a fama e a saúde de uma pessoa são estados funcionais, e no entanto a intuição nos diz que também não são estados mentais. Para esclarecer nossa intuição, temos que identificar uma característica partilhada por nossas dores e crenças, mas não por nossa beleza ou nossa saúde. Não adiantará identificar o mental como aquilo que pode sobreviver à morte ou à destruição do corpo, uma vez que a beleza pode sobreviver à morte de uma pessoa, e a fama, à destruição de seu corpo. Se dissermos que a fama ou a beleza de uma pessoa existem apenas relacionalmente, mais aos olhos ou na opinião de outros do que como estados dela mesma, teremos problemas viscosos no que concerne à distinção entre propriedades meramente relacionais das pessoas e seus estados intrínsecos. Arranjamos problemas igualmente viscosos no que tange às crenças inconscientes de uma pessoa, que só podem ser descobertas após sua morte, por psicobiógrafos, mas que presumivelmente são estados mentais seus assim como aquelas crenças que tinha percepção de possuir durante a vida. Pode haver uma maneira de explicar por que a beleza de uma pessoa é uma propriedade relacionai não-intrínseca enquanto que sua paranoia inconsciente é um estado não-relacional intrínseco; mas isso pareceria estar explicando o obscuro pelo mais obscuro.
Concluo que não podemos fazer da não-espacialidade critério de estados mentais, mesmo que apenas pelo fato da noção de “estado” ser suficientemente obscura para que nem o teimo estado espacial, nem o termo estado não-espacial pareçam úteis. A noção de entidades mentais como não-espaciais e de entidades físicas como espaciais, se chega a fazer algum sentido, o faz antes para particulares, para sujeitos de predicação, que para a possessão de propriedades por tais sujeitos. Podemos perceber alguma espécie tênue de sentido pré-kantiano em porções de matéria e porções de substância mental, mas não podemos perceber qualquer sentido pós-kantiano em estados espaciais e não-espaciais de particulares espaciais. Obtemos um vago sentido de poder explicativo quando nos dizem que os corpos humanos se movem como o fazem porque são habitados por espíritos, mas absolutamente nenhum quando nos dizem que as pessoas têm estados não-espaciais.
Espero ter dito o suficiente para mostrar que não estamos habilitados, sem antes perguntar o que entendemos por “mental”, a começar a falar sobre o problema mente-corpo, ou sobre a possível identidade ou necessária não-identidade de estados mentais e físicos. Espero, além disso, ter incitado a suspeita de que a nossa assim chamada intuição sobre o que é mental pode ser apenas nossa disposição de entrar num jogo de linguagem específicamente filosófico.
Esta é, com efeito, a visão que quero defender. Penso que essa assim chamada intuição não é mais que a capacidade de comandar certo vocabulario técnico — que não tem utilidade fora dos livros de filosofia, e que não se liga a temas da vida cotidiana, da ciência empírica, da moral ou da religião. Em seções posteriores deste capítulo esboçarei um relato histórico de como emergiu esse vocabulário técnico mas, antes de fazê-lo, sondarei alguns temas circunvizinhos. São as possibilidades de definir “mental” em termos da noção de “intencionalidade” e em termos da noção de ser “fenoménico” — de ter uma aparência característica, uma aparência de algum modo exaustiva de realidade.
Ver “Refutation of Idealism”, de Kant, em K.d.r.V., B274ss., e P. F. Strawson, Individuais (Londres, 1959), cap. 2, e The Bounds of Sense (Londres, 1966), pp. 162ss. ↩