(Paolo Virno, “Grammaire de la multitude“)

Duas das teses de Simondon são particularmente relevantes para a discussão da subjetividade na era da multidão. A primeira tese sustenta que a individuação nunca é completa, que o pré-individual nunca se traduz totalmente em singularidade. Consequentemente, segundo Simondon, o sujeito é constituído por uma mistura permanente de elementos pré-individuais e traços individuados; poder-se-ia mesmo dizer que é essa mistura. Seria um erro grave, segundo Simondon, identificar o sujeito com uma das suas partes, a parte singularizada. O sujeito, pelo contrário, é composto: “eu” mas também “nós”; singularidade sem reprodução possível, mas também universalidade anónima.

Se o “eu” individualizado coexiste com o fundo biológico da espécie (perceção sensorial, etc.), com as características públicas ou inter-psíquicas da língua materna, com a cooperação produtiva e o intelecto geral, há que acrescentar, no entanto, que esta coexistência nem sempre é pacífica e dá mesmo origem a todo o tipo de crises. O sujeito é um campo de batalha. Não raro, os aspectos pré-individuais parecem desafiar a individuação, que se revela um resultado precário, sempre reversível. Noutras ocasiões, dá-se o contrário: é o “eu” estrito que parece querer reduzir a si, com extrema voracidade, todos os aspectos pré-individuais da nossa experiência. Em ambos os casos, não faltam o pânico, a ansiedade e as patologias de todo o género. Ou um eu sem mundo, ou um mundo sem eu: são os dois limites extremos de uma oscilação que, no entanto, em formas mais atenuadas, nunca está completamente ausente. É claro para Simondon que há duas testemunhas desta oscilação, os afectos e as paixões. A relação entre o pré-individual e o individual é, de fato, mediada pelos afectos.

Um aparte. A mistura, nem sempre harmoniosa, entre os aspectos pré-individuais e os aspectos singularizados do sujeito afecta de perto a relação entre as singularidades do “Número” e o intelecto geral. No primeiro capítulo, debruçámo-nos sobre o aspecto aterrador que o “intelecto geral” pode assumir quando não se traduz numa esfera pública, mas exerce a pressão de um poder impessoal e despótico. Neste caso, o pré-indivíduo aspira e ameaça. No pensamento crítico do século XX — e pensemos na Escola de Frankfurt — argumentou-se que a infelicidade resulta da separação entre o indivíduo e as forças produtivas universais. É-nos apresentado um indivíduo confinado a um nicho frio e escuro, enquanto ao longe brilha o poder anónimo da sociedade (e da espécie). Esta é uma ideia completamente falsa. A infelicidade e a insegurança não provêm da separação entre a existência individual e os poderes pré-individuais, mas do seu estreito entrelaçamento, quando este se manifesta como dissonância, oscilação patológica, crise.

Passemos agora à segunda tese de Simondon. Ele argumenta que o coletivo, a experiência colectiva, a vida de grupo não é, como geralmente se acredita, o domínio no qual as características salientes do indivíduo singular são diluídas ou diminuídas, mas que, pelo contrário, é o terreno de uma individuação nova e mais radical. Ao participar num coletivo, o sujeito, longe de renunciar aos seus traços mais particulares, tem a oportunidade de individuar, pelo menos em parte, a parte da realidade pré-individual que ainda transporta dentro de si. Para Simondon, no coletivo, procuramos aperfeiçoar a nossa própria singularidade, para a alinhar. É apenas no coletivo, e certamente não no sujeito isolado, que a percepção, a linguagem e as forças produtivas podem ser configuradas como uma experiência individualizada.

Esta tese facilita a compreensão da oposição entre “povo” e “multidão”. Para a multidão, o coletivo não é centrípeto ou fusional. Não é o lugar onde se forma a “vontade geral” e se prefigura a unidade do Estado. Uma vez que a experiência colectiva da multidão não embota, mas, pelo contrário, radicaliza o processo de individuação, está excluída, por princípio, a possibilidade de extrapolar um traço homogéneo dessa experiência; está excluída a possibilidade de “delegar” ou “transferir” qualquer coisa para o soberano. O coletivo da multidão, como individuação subsequente ou de segundo grau, é a base da possibilidade de uma democracia não representativa. Inversamente, podemos definir “democracia não-representativa” como uma individuação do pré-individual histórico-social: ciência, conhecimento, cooperação produtiva, intelecto geral. Os “Números” persistem como “Números”, sem aspirar à unidade do Estado, porque: 1) enquanto singularidades individuadas, têm já atrás de si a unidade/universalidade que se inscreve nos diferentes tipos de pré-indivíduo; 2) na sua ação colectiva, acentuam e continuam o processo de individuação.

Gilbert Simondon