Husserl1, em seu texto A Crise da humanidade europeia e a filosofia, apresenta uma análise fenomenológica do que denomina cientificidade, e particularmente sua significação positivista, ou seja, redução da ciência apenas ao conhecimento dos fatos. Para ele esta tendência domina todas as ciências e denota uma crise profunda do estatuto da cientificidade. Em suas palavras: “o positivismo decapita a filosofia” (p. 7-8), e “puras ciências positivas fazem homens puramente positivos”. O positivismo promove o fetichismo do fato e não permite que se questione o olhar sobre os fatos, ou seja, o ato ou o vivido pelo qual temos acesso aos fatos
Com efeito, segundo Kolakowsky2, “o positivismo é uma posição filosófica relativa ao saber humano, […] constitui um conjunto de regras e de critérios de juízo sobre o conhecimento humano”. Entre estas regras para enunciação de juízos válidos sobre o mundo, a primeira é a do “fenomenalismo”: não há diferença real entre a ‘essência’ e o ‘fenômeno’; temos o direito de registrar o que se manifesta efetivamente na experiência, porém as opiniões sobre substância, formas substanciais, qualidades ocultas sob a experiência não são dignas de fé. O corolário desta regra é o “nominalismo”: regra pela qual fica interdito supor que um saber qualquer, formulado em termos gerais, tenha na realidade outros equivalentes que os objetos concretos singulares.
“Um fato é um fato”, eis a máxima positivista. O que leva seus seguidores a enfatizar apenas o fato com tal, deixando de lado o modo de acesso ao fato, o como do olhar que constitui o fato. Deste modo um positivista não admite refletir sobres seus atos vividos e tende a fazer abstração de sua subjetividade e do sentido que impõe a qualquer fato. Deixando de lado sua constituição do fato, portanto o sentido que este tem para si, o positivista deixa de lado também os problemas vitais, o que leva Husserl a afirmar: “esta ciência não tem nada a nos dizer […]. As questões que exclui por princípio são precisamente as questões que são as mais quentes para nossa época infeliz, para uma humanidade abandonada aos desarranjos de seu destino: estas são as questões que tratam sobre o sentido ou a ausência de sentido de toda esta existência humana”3.
Para Husserl, o risco positivista que incorrem as ciências tem uma dupla consequência. Por um lado, a atenção do cientista é polarizada sobre o estudo do fato, por outro lado, este privilégio acordado à pura observação dos fatos leva à cegueira da instância subjetiva ela mesma. Este desinteresse do cientista por sua própria subjetividade, em ação na démarche científica que adota, é a condição maior para a crise atual das ciências. Ou seja, a falta de reflexividade na pesquisa científica, de atenção dada ao “enigma da subjetividade” que nela opera, leva ao objetivismo, sinônimo de positivismo, segundo Husserl.
Esse objetivismo nasce com Galileu e a matematização da natureza, de acordo com Husserl. As geometrias platônicas e euclidianas conservam uma ligação estreita com o sensível no modo como figuram, de maneira geométrica, os números compreendidos como ideias, e se aplicam assim a produzir uma cópia sensível das ideias inteligíveis. Ao contrário, a geometria do século XVII se constitui como uma disciplina bem mais abstrata. Ela deseja romper deliberadamente com o referente sensível. Se nomeando “geometria analítica”, ela adota a linguagem abstrata da álgebra. Desde então, a natureza, idealizada em fórmulas algébricas, se torna uma “multiplicidade matemática”, ou seja, um domínio possível do conhecimento, regido por uma teoria que o determina exaustivamente quanto a sua forma, segundo Husserl.
Rompidas suas ligações com a realidade sensível, esta nova geometria algebrizada se elabora como um domínio formal autônomo, tendo suas regras e seus procedimentos próprios. Matematizar a natureza, é por conseguinte torná-la um objeto abstrato regido por leis universais, e desconectado da diversidade do sensível e do individual. Assim estabelecem-se as condições para nascimento de uma “física matemática”, onde a natureza physis recebe o nome de física. Com a matematização da natureza, ou seja com o início da física como disciplina científica nasce também um tipo de espirito focalizado sobre seu objeto, a natureza física, consequentemente cego em relação a si mesmo enquanto sujeito operante.
No afã de retornar à coisa ela mesma, enquanto manifestação imediata da constituição mútua sujeito-objeto, Husserl4 define uma “eidética descritiva”. A questão que propõe é: em que medida as disciplinas eidéticas antigas (em particular a matemática) eram suscetíveis de servir de guia a elaboração de uma “eidética descritiva”?. Sua resposta, seguida de longa demonstração, é céptica em relação a esta possibilidade. A ideia de uma “matemática dos fenômenos”5 é um “projeto falacioso”. As Ideen tentam justamente comprovar esta heterogeneidade elucidando “as propriedade específicas das disciplinas matemáticas em oposição àquelas de uma teoria eidética do vivido”.
Como afirma Parrochia6, “tudo parece opor, a priori, a existência às matemáticas”. Estas visam o universal e retém da realidade apenas o que visam, segundo seu esquematismo, como objeto de saber. Como nos lembra Heidegger7, a essência das matemáticas (o que se poderia chamar o matemático) evocava na Grécia antiga o que se poderia aprender e portanto ensinar (mathemata). Com efeito, os gregos distinguiam vários tipos de realidade: ta physica(as coisas que surgem e se produzem delas mesmas), ta poioumena (as coisas instituídas pela mão ou ofício do homem, ta chremata (as coisas na medida que estão em uso), ta pragmata (as coisas que lidamos para as trabalhar ou as transformar), ta mathemata (as coisas na medida que podemos aprendê-las).
Para Heidegger, este aprender significa “se apropriar o uso de”, ou seja, o aprender é uma forma de apreender. Mas aprender é sempre aprender a conhecer, tomar conhecimento. “As mathemata são as coisas na medida que tomamos conhecimento delas”. Neste sentido é que a sentença no portal da Academia platônica (“que ninguém entre que não seja geômetra”) deve ser entendida, segundo Heidegger, não como uma exigência de formação em geometria ou matemáticas, mas como a compreensão “que a condição fundamental de possibilidade de um justo saber é o saber das pressuposições fundamentais de todo saber, e a atitude que um tal saber sustenta”.
Deste modo, Heidegger determina a essência da matemática em seis pontos capitais:
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- A matemática é um projeto que “salta” por cima das coisas em direção a sua “coisidade”; ela abre um espaço de “mostração” das coisas, que é o domínio dos “fatos”;
- Nesse projeto é posto também aquilo pelo qual as coisas são dadas, ou seja, as modalidade segundo as quais elas são estimadas de antemão; os axiomas são proposições de fundamento, princípios;
- Como axiomática, o projeto matemático, retomando a essência das coisas, traça ao mesmo tempo seu esboço de construção e sua estrutura de relações;
- Ela define desta maneira um domínio, onde a axiomática se aplica, que é a natureza (conectividade espaço-temporal dos movimentos nos quais as coisas são determinadas como corpo e nada mais);
- O gênero do projeto matemático demanda primitivamente uma matemática precisa, da mensuração sob distintas formas;
- A metafísica moderna nasce do projeto matemático, na medida que visando o ente em sua totalidade deve fatalmente buscar seu solo matemático, até encontrar algo inabalável.
Embora muito mais deva ser dito, e o assunto recém se descortina para exploração, é conveniente concluir dada as limitações impostas pelos objetivos deste breve ensaio. Vale, no entanto, deixar ainda aberta uma possível linha de questionamento dentro do que Dominique Janicaud8 denomina “o poder do racional”: a ciência moderna terá buscado na compreensão da Natureza, a “potencialização” máxima da racionalidade à partir das matemáticas, esquecendo ou ignorando a imprescindível correlação entre ser e saber?
Husserl, Edmund. La crise des sciences européennes et la phénoménologie transcendantale. Paris: Gallimard, 1976 ↩
Kolakowsky, Leszek. La philosophie positiviste. Paris: Denoël, 1976 ↩
Husserl, Edmund. La crise des sciences européennes et la phénoménologie transcendantale. Paris: Gallimard, 1976, p. 10 ↩
Husserl, Edmund. Idées directrices pour une phénoménologie. Paris: Gallimard, 1950 ↩
ibid. p. 228 ↩
Parrochia, Daniel. Mathématiques et existence. Seyssel: Champ Vallon, 1991 ↩
Heidegger, Martin. Qu’est-ce qu’une chose ?. Paris: Gallimard, 1962. ↩
JANICAUD, Dominique. La puissance du rationnel. Paris: Gallimard, 1985. ↩