Excerto do Prólogo da tradução portuguesa de Irene Borges-Duarte, de Martin Heidegger, CAMINHOS DE FLORESTA [GA5]
Dasein

O primeiro destes reptos foi, sem dúvida, aquele que o próprio uso do termo Dasein por Heidegger constitui. É hoje cada vez mais habitual contornar a dificuldade, deixando o termo por traduzir, com base em razões, fundamentalmente, de dois tipos: o primeiro, negativo, para evitar conotações desviadas ou espúrias (principalmente, a versão “óbvia” durante décadas em praticamente todas as línguas – e ainda hoje hegemônica em português – como “ser-aí”); o segundo, positivo, com base no argumento forte constituído pela constatação do novum de sentido instituído pelo uso heideggeriano do termo, que não se reduz às acepções tradicionais, filosóficas ou comuns (“existir”, “existência”, “vida”, “estar presente”), e até exclui algumas (a “existência” no sentido do “estar-aí-presente” das coisas, a que Heidegger chama Vorhandenheit), nem às variantes “inovadoras” inventadas – até mesmo pelo seu Autor, como être-le-là – para tentar traduzir o seu sentido mais próprio. Heidegger procurou, de fato, embora tardiamente, evitar ser lido à maneira “existencialista”, quer jaspersiana, quer sartriana, diretamente ligada a traduções de Dasein como “existência” (ou vida humana), ou como “ser-aí”, isto é, situado, que está e se sente “no mundo”, num sentido meramente ôntico, oscilante entre o sein bei do “estar-residindo no mundo junto dos entes”, e o caráter mais propriamente “intra-mundano” destes últimos, caracterizados, justamente, por não ser à maneira do Dasein (a “presença” das coisas de que o homem lança mão no seu quotidiano procurar fazer a sua vida). Para Heidegger é, contudo, importante essa relação vinculante entre o “ser” e o seu “aí” compreensivo-sentinte-linguisticamente-articulado, âmbito da sua mostração fenomenológico-aletheiológica. Decidiu-se, por isso, adotar uma tradução em que esse vínculo apareça, como em alemão, explícito, evitando embora, quer a versão mais habitual, como “ser-aí”, quer a que o próprio Heidegger sugere, como “ser-o-aí”, na medida em que ambas reduzem e orientam, em direções distintas, o sentido pleno e original do termo, em que ambas essas conotações se conjugam, como num nó ôntico-ontológico, juntamente com as de existência e vida ou ser do ente humano, na sua facticidade. Para traduzir esse todo de sentido, por analogia com a formação da própria palavra alemã, escolheu-se a fórmula aí-ser, aqui adotada em todas as traduções. O caráter de estranheza que, decerto, provocará a sua leitura em português, talvez crie uma rejeição, à partida e maioritariamente, em quem está habituado a ouvir outra fórmula, tacitamente vigente como versão óbvia do termo e do conceito nele capturado. Mas essa rejeição inicial deve, justamente, ser o apelo a compreender o sentido poderoso e rico do termo, que nem a sua não tradução em português, nem a sua versão vulgar permitem manter em vigor. Há, contudo, que ter em conta que o próprio Heidegger introduz, as vezes, uma ênfase especial ao separar com hífen os dois elementos da palavra: em Da-sein, em das Da-sein, chama-se a atenção para cada um dos elementos de sentido, mais que para o todo, para o plus de significação que resulta da sua aglutinação, acentuando, portanto, singularmente, um dos sentidos vigentes no termo: o de “ser aí” ou o de “ser-o-aí”, consoante o contexto.

Irene Borges-Duarte