A de-monstração fenomenológica do ser dos entes que se encontram mais próximos se faz pelo fio condutor do ser no mundo cotidiano, que também chamamos de modo de lidar no mundo a com o ente intramundano. Esse modo de lidar já sempre se dispersou numa multiplicidade de modos de ocupação. Como se viu, o modo mais imediato de lidar não é o conhecimento meramente perceptivo e sim a ocupação no manuseio e uso, a qual possui um “conhecimento” próprio. A questão fenomenológica vale, sobretudo, para o ser dos entes que vêm ao encontro nessa ocupação. [Heidegger, Ser e Tempo, pág. 108]
Por sua ação vital, a pre-sença [Dasein] na ocupação informacional-comunicacional na situação de uso da tecnologia da informação é um modo particular de lidar no mundo e com este ente intramundano, o computador. Na peculiaridade desta ocupação arregimentam-se outros seres-à-mão (Zuhandenheit) ou elementos na constituição do “dar-se da informática”. Dada a natureza de engenho de representação do computador, no “dar-se da informática” um destes elementos é a estrutura digital de representação da realidade, no caso como “dados simbólicos” manipulados por “programas no computador”. Dados simbólicos que guardam uma referência com o mundo, enquanto reflexo deste sobre a bola de cristal. Da mesma maneira os programas no computador e as bases de dados digitais, sobre as quais operam, referem-se à forma da bola que determina seu reflexo, enquanto lógica formal e estrutura de dados digitais.
A bola de cristal é, assim como o computador um engenho técnico, ou seja, um engenho constituído segundo certa arte de reflexão ou de representação. A bola de cristal e o computador são “arte-fatos”. Na ocupação informacional-comunicacional refletem-se no computador pre-sença e “mundo circundante”, em todos os sentidos, do literal ao figurativo. No computador, como na bola, tudo se apresenta como “fato técnico”, como um simulacro informacional-comunicacional.
A constituição progressiva e interativa de um processo de informatização se dá pela projeção do ser-no-mundo nesta ocupação informacional e comunicacional sobre um arte-fato tecnológico, onde o ser-no-mundo é capturado, apreendido ou apropriado em termos de dados simbólicos e instruções lógicas, armazenados na tecnologia da informação. O que passa muitas vezes desapercebido em tudo isto é a regência do “dar-se da informática”. Quem rege e como rege este “dar-se”, são algumas das questões críticas na constituição da informática, a serem ainda investigadas.
O computador, assim como a bola de cristal, pela manipulação da pre-sença, pelo seu posicionamento adequado diante da pre-sença, enquanto ser-no-mundo, reflete esta mesma pre-sença e seu mundo, representando este “ser-no-mundo”. Mas, sempre segundo regras lógicas, que enquadram uma problemática, ou seja, segundo a abordagem, a interpretação e a tradução de um problema qualquer, a ser pretensamente solucionado, como problema de natureza informacional/comunicacional.
A compreensão do ser nesta ocupação informacional-comunicacional assume a interpretação de um problema qualquer, em linguagem ou em termos informacionais/comunicacionais, no meio técnico-científico-informacional iluminado pela “com-posição”, a Ge-stell. Assim como o reflexo na bola de cristal e a compreensão do mesmo reflexo, se dá em um meio iluminado pela luz que emana da janela ao fundo, que pode ser por sua vez localizada pelo próprio reflexo da pessoa e de seu mundo sobre a bola.
O “dar-se da informática” constitui-se segundo a essência da técnica moderna: a “com-posição”. Esta é a luz que ilumina o meio técnico-científico-informacional, que hoje em dia, cada vez mais, atribui “coloração” ou perspectiva própria, a todos elementos co-responsáveis de sua constituição. Este meio se conjuga com outros elementos no “dar-se e propor-se da informática” e orienta, desde o princípio, este mesmo “dar-se e propor-se”. Quanto mais, por sua imanência no computador ou no engenho, da mesma maneira que uma capacidade luminescente é imanente a própria bola de cristal, que se constituiu como arte-fato, segundo esta mesma capacidade luminescente.
Apresentam-se assim reunidas as condições para a constituição de um “dar-se e propor-se da informática” em qualquer circunstância, muitas vezes à revelia da ação direta da pre-sença vital que teoricamente conduziria e harmonizaria a coalescência de todos os elementos neste “dar-se”. Este é outro aspecto notável desta tecnologia: ela se dá sempre como o reflexo de uma pre-sença, de sua problemática e de seu contexto imediato, sobre o engenho de representação, o computador, porém, na construção do engenho algo de sua aplicação e uso já vem deliberado, imanente à tecnologia. Cabe assim uma questão: quem ou o que efetivamente rege o “dar-se e propor-se da informática”?
Na leitura metafórica da imagem do Escher, a mão, aparentemente desprendida de tudo, que emerge no quadro sustentando a bola, e que na dúvida parece ser de quem empunha a bola, aponta para algo ou alguém, ainda indefinido.
Há algo paradoxo na imagem onde apenas uma bola e uma mão estão retratadas. Os reflexos de uma pessoa e de seu contexto sobre a bola parecem indicar que esta mão que eleva a bola é a mesma da pessoa refletida sobre ela. Um pequeno reflexo da mão que empunha a bola, na parte inferior da mesma, parece até mesmo confirmar esta crença. Mas como se trata apenas de um reflexo sobre a bola pode ser uma ilusão de ótica…
Este aparente paradoxo também pode ser verificado no “dar-se e propor-se da informática”. A pre-sença, enquanto ser-no-mundo, é levada a considerar-se como condutora e arregimentadora da coalescência dos elementos responsáveis por este “dar-se e propor-se”. No entanto, algo no estatuto original do engenho, do computador, sobre o qual se efetiva este “dar-se e propor-se”, parece estar guiando e ilustrando sua doação e proposição, o tempo todo, como dispositivo informacional-comunicacional.
A natureza reflexiva da bola de cristal, fundada em seu estatuto técnico, operando em sintonia com a luz, a “com-posição” que ilumina o meio onde se situa, parece indicar também algo de suma relevância. A bola, em analogia com o computador enquanto engenho de representação, está preparada para responder à luz que ilumina o meio, bastando apenas ser tomada e elevada por uma pre-sença, que, nesse sentido, se coloca subserviente ao estatuto técnico do “arte-fato”, sua natureza e seu poder de reflexão, para obter o reflexo pretendido. O “dar-se e propor-se da informática” se constitui, do mesmo modo, segundo um ser-no-mundo, numa ocupação informacional-comunicacional nivelada e ditada por algo que emana do estatuto técnico do computador e da luz que ilumina o meio.
O ser-no-mundo na ocupação de uso da bola de cristal reflete-se sobre a bola, em conformidade com “dis-posições” desta, ou seja, submisso às condições de refração e outras disposições da bola de cristal. Do mesmo modo, no “dar-se e propor-se da informática”, o ser-no-mundo na ocupação de uma situação de uso do computador reflete-se sobre o engenho, segundo as “dis-posições e dis-positivos” próprios do engenho, ilustrado pela “com-posição”, a luz que ilumina o meio.
Dessa maneira, a estrutura de dados simbólicos, a linguagem de programação e as características técnicas do equipamento, enquanto “dis-posições e dis-positivos”, “manipulam” (como a mão “anônima” da imagem) também a conformação dos dados que nele são registrados e as possibilidades de tratamento destes dados, segundo a funcionalidade prevista no “dar-se e propor-se da informática”. As “disposições e dispositivos” que compõem o engenho, segundo sua constituição a priori, ordenam e limitam o poder e as possibilidades de arregimentação de qualquer ocupação informacional-comunicacional de um ser-no-mundo; neste caso, instala-se uma mundanidade “restrita”.