Heidegger, no livro “O Sofista de Platão”1, curso dado em 1924-1925, levantava também um pensar sobre a matematização. No parágrafo §15 (pág. 69) desta obra, no qual examina a essência da matemática de acordo com Aristóteles, começa afirmando que o conhecimento matemático tem como tema aquilo que mostra a si mesmo, por ser resgatado de algo e especificamente daquilo que é imediatamente dado. O matemático é o assim extraído daquilo que mostra a si mesmo de modo imediato.
Esta extração, separação ou abstração está conectada com a chora, lugar; e, este lugar pertence aos entes eles mesmos. O matemático toma algo de seu próprio lugar, embora o matemático não esteja em um local (topos). Em termos modernos isto soa paradoxal, mas esta separação é para Aristóteles o modo como o matemático ele próprio se torna objetivo.
Segundo Heidegger, Aristóteles enfatiza que o objeto matemático está em “local algum”. O local (topos) deve ser algo, como, por exemplo, quando temos água em uma jarra e esvaziamos, passando agora a ser preenchido por ar, o local, onde havia água e agora tem ar, sempre esteve lá independente do conteúdo. O não-local não significa o topos como algo separado do que nele se encontra, mas como distinto. O local tem assim certo poder (dynamis), implicando que o local pertence ao ente ele mesmo; o local constitui precisamente a possibilidade da presença própria do ente em questão. Deste modo, pode afirmar que cada ente tem seu local.
Em um curso apresentado em 1935-1936, Heidegger2 afirma que a essência das matemáticas (o que se poderia chamar o matemático) evocava na Grécia antiga a lição, o ato de aprender (mathesis) e o que se poderia aprender e, portanto, ensinar (mathemata).
Isto, por sua vez, se enquadrava dentro de um contexto amplo onde os gregos distinguiam vários tipos de realidade: ta physika (as coisas que surgem e se produzem delas mesmas); ta poiomena (as coisas instituídas pela mão ou ofício do homem); ta chremata (as coisas na medida em que estão em uso); ta pragmata (as coisas que lidamos para trabalhá-las ou transforma-las), ta mathemata (as coisas na medida em que podemos aprendê-las).
Este aprender significa “apropriar-se o uso de”, ou seja, o aprender é uma forma de apreender. Por outro lado, aprender é sempre aprender a conhecer, tomar conhecimento. “As mathemata são as coisas na medida em que tomamos conhecimento delas”. Neste sentido, é que a sentença no portal da Academia platônica (“que ninguém entre que não seja geômetra”) deve ser entendida, segundo Heidegger, não como uma exigência de formação em geometria ou matemáticas, mas como a compreensão “que a condição fundamental de possibilidade de um justo saber é o saber das pressuposições fundamentais de todo saber, e a atitude que tal saber sustenta”.
Deste modo, o sentido do aprender é fixado ontologicamente: o aprender é reconhecimento do ser sempre já conhecido da coisa. O aprender tem assim o caráter de antecipação. Recolhemos a possibilidade de conhecer na coisa mesmo. Segundo Milet3 a originalidade de Heidegger é de incluir todas as ordens de coisas na perspectiva matemática4), em particular as pragmata, onde aprender um instrumento é se reapropriar de uma familiaridade latente. “É a reapropriação daquilo que está pré-revelado no saber inerente ao instrumento que torna possível a aprendizagem de sua natureza, e com a aprendizagem, a produção, o exercício, e o uso”.
Deste modo, Heidegger determina a essência da matemática em seis pontos capitais:
- A matemática é um projeto que “salta” por cima das coisas em direção a sua “coisidade”; ela abre um espaço de “mostração” das coisas, que é o domínio dos “fatos”;
- Nesse projeto é posto também aquilo pelo qual as coisas são dadas, ou seja, as modalidades segundo as quais elas são estimadas de antemão; os axiomas são proposições de fundamento, princípios;
- Como axiomática, o projeto matemático, retomando a essência das coisas, traça ao mesmo tempo seu esboço de construção e sua estrutura de relações;
- Ela define desta maneira um domínio, onde a axiomática se aplica, que é a natureza (conectividade espaço-temporal dos movimentos nos quais as coisas são determinadas como corpo e nada mais);
- O gênero do projeto matemático demanda primitivamente uma matemática precisa, da mensuração sob distintas formas.
HEIDEGGER, Martin. Plato’s Sophist. Tr. Richard Rojcewicz and André Schuwer. Bloomington: Indiana University Press, 1992/1997. ↩
HEIDEGGER, Martin. O que é uma coisa?. Lisboa: Edições 70, 1992 ↩
MILET, Jean-Philippe. L’Absolu Technique. Heidegger et la question de la technique. Paris: Editions Kimé, 2000 ↩
A nossa expressão “o matemático” tem sempre dois sentidos: significa, em primeiro lugar, o que se pode aprender do modo já referido e somente desse modo; em segundo lugar, o modo do próprio aprender e do proceder. O matemático é aquilo que há de manifesto nas coisas, em que sempre nos movimentamos e de acordo com o qual as experimentamos como coisas e como coisas de tal gênero. O matemático é a posição-de-fundo em relação às coisas na qual as coisas se nos pro-põem, a partir do modo como já nos foram dadas, têm de ser dadas e devem ser dadas. O matemático é, portanto, o pressuposto fundamental do saber acerca das coisas. (HEIDEGGER, Martin. O que é uma coisa?. Lisboa: Edições 70, 1992, pág. 81-82 ↩