Atualmente a ciência permeia a vida como língua franca, como padrão de racionalidade e como princípio de fé; até os fundamentalistas utilizam produtos da ciência, em sua parceria perfeita com a técnica. Como discurso vencedor, a ciência formaliza e reveste os objetos técnicos de uma idoneidade, além da simples garantia de eficiência e eficácia.

Como demonstra Michel Henry1, o saber científico é objetivo por princípio. No entanto, este objetivo significa duas coisas: que o saber da ciência é racional e universal. Deste modo ele é um saber verdadeiro, em oposição às opiniões variáveis dos indivíduos, aos pontos de vistas particulares, a tudo que pode ser qualificado de subjetivo. Ora, esta pretensão de suplantar a particularidade e a relatividade do subjetivo, vai além da rejeição às diferenças individuais, pois remete à natureza profunda da experiência e da condição humana.

Com efeito, o mundo se dá em aparições sensíveis, variáveis e contingentes que compõem uma espécie de fluxo heracliteano, onde nada subsiste, onde não se encontram pontos de apoio fixos para um conhecimento sólido. A ciência moderna da natureza vai romper com esta aporia, fazendo justamente abstração das qualidades sensíveis, e de uma maneira geral, de tudo que é tributário à subjetividade, para reter apenas as formas abstratas do universo espaço-temporal. Estas, por sua vez, se prestam a uma determinação geométrica que é a mesma para todo e qualquer espírito. Deste modo, se propõe, em lugar das impressões individuais e das opiniões variáveis que elas suscitam, um conhecimento unívoco do mundo.

Por outro lado, como afirma Henry, as determinações geométricas e matemáticas, enquanto idealidades supõem a operação subjetiva que as produz e sem a qual elas não se constituiriam. Pois não há na natureza, como imaginava Galileu, nem número, nem cálculo, nem adição, nem subtração, nem reta, nem curva: estas são de fato significações ideais que encontram sua origem absoluta na consciência que as cria, no sentido estrito da palavra. Neste sentido, a ciência repousa sobre um princípio original, que se manifesta através da corporalidade humana: a vida. A ilusão de Galileu como de seus seguidores foi de considerar a ciência como um saber absoluto, tomando o mundo matemático e geométrico como modelo de um conhecimento unívoco do mundo real, mundo este que só se pode intuir e experimentar nos modos concretos de nossa vida subjetiva.

Essa vida subjetiva não cria apenas as idealidades e as abstrações da ciência (como de todo pensamento conceitual), ela também dá forma a este mundo da vida onde se desenvolve nossa existência concreta. Uma coisa tão simples quanto um cubo ou uma casa não é algo que exista fora de nós e sem nós, em termos do substrato de suas qualidades. São coisas graças à atividade complexa de nossa percepção que lhes dá sentido, além da sucessão de dados sensíveis que temos destas coisas. Esta consciência cujas operações transcendentais constituem os objetos do mundo da percepção, antes de criar as idealidades do mundo científico, é justamente o poder de dar a ver, de tornar visível, de fazer presente. Um dar a ver que é, ao mesmo tempo, um fazer-vir-diante-de-si na condição de “ob-jeto”, de tal modo que a visibilidade pela qual toda coisa se torna visível nada mais é que a objetividade como tal. Ou seja, o plano de luz onde se mostra tudo, a cada um, seja uma realidade sensível ou uma idealidade científica. Assim sendo, o sujeito não é consciência, mas a “condição do objeto”: o que faz que as coisas se tornem objetos para nós, se mostrem para nós, de modo que possamos conhecê-las.

A abstração à qual procede a ciência é, portanto, dupla, pois define o mundo científico, à parte das qualidades sensíveis e dos predicados afetivos que pertencem ao meio humano, e retém deles apenas as formas suscetíveis de uma determinação ideal. Este movimento garante o método, na medida que permite a definição de procedimentos que permitem, por exemplo, a medição quantitativa. Entretanto, o desenrolar deste saber ideal só guarda sua legitimidade se reconhecer seus limites originais, pois ao desmerecer as qualidades sensíveis, desmereceu também a vida que as anima, e consequentemente o ser humano que manifesta a vida. Esta é a segunda e a mais perigosa abstração que a ciência perfaz: a abstração da vida, ou seja do que nos importa realmente.

A ciência que se crê só no mundo e que se comporta como tal se concretiza na técnica, seja um conjunto de operações e de transformações explorando suas possibilidades na ciência e em seu saber teórico, à revelia de outras formas de saber e de qualquer referência ao mundo da vida e à vida ela mesma. No entanto, como já vimos, a essência da técnica, em sua relação dupla, positiva à respeito da ciência, e negativa à respeito da vida é de difícil apreensão, requerendo uma elucidação sistemática.

Nessa alquimia entre ciência e técnica, no cadinho de uma humanidade que se instituía como sociedade moderna, caracterizada pela emergência de diferentes autonomias, nos mais variados domínios, da vida contemplativa à vida ativa, percebe-se o que o filósofo Dominique Janicaud2 denominou de “potencialização científica”.

A ciência moderna inverte o sentido do adágio escolástico: operari sequitur esse. A operação não se subordina a um ser anterior, superior em si. Ela faz sobressair, por exemplo, uma lei universalmente válida cujas aplicações não cessarão de confirmar a necessidade e a eficácia. A aparição da lei destaca um campo de potencialização, quer dizer novos poderes: virtualidades voltadas não para uma anterioridade absoluta e em si, mas para os efeitos novos que serão obtidos por colocar em obra (e em aplicação) a explicação científica. (Janicaud, 1985, p. 157)

Para Janicaud, na potencialização científica verifica-se o “possível” atualizado e atualizando, graças a um sentido determinado do “possível”, segundo a tradição originária de Aristóteles: o virtual3 sobre a virtualização: uma inversão da trajetória normal da atualização, da manifestação de uma forma a partir de uma configuração de tendências e forças.)). Nesta linha de pensamento, se a ciência potencializa, não é no universo imenso e vago dos possíveis, mas a partir de uma energeia que já excluiu, por sua própria posição, outros possíveis, e que abre no entanto por sua theoria novas visões, quer dizer novas possibilidades técnicas e práticas. O ato, para Aristóteles, é anterior a potência. Assim sendo, não é pelo fato de possuírem a faculdade de ver que os animais veem, mas é justamente para ver, que eles possuem esta faculdade.

Em sua generalidade, a potencialização designa, em Janicaud, o processo de engendramento do poder da racionalidade, especialmente no Ocidente. Os dois sentidos de “reserva de possível” e de “efetuação do ato”, estão copresentes na expressão tão usual: “o poder da ciência”.

As múltiplas idas e vindas entre ciência e técnica, na fundação da Modernidade, insinuam também, para Janicaud, a ideia de que um meio, sobre bases científicas, estaria se instituindo. Um meio, em que o pensar e o agir, se regulam segundo os princípios propostos pela ciência emergente; princípios de coerência, de apodicidade, e de universalidade, pretendendo potencializar a racionalidade humana, pela transposição de um limiar decisivo do ser humano tradicional; tornando efetivamente possíveis e virtualmente realizáveis, operações antes inimagináveis e inconcebíveis.

O meio recebe, portanto, esta qualificação de científico, pelo assentimento de seu centro correspondente, o homem, a este poder da racionalidade moderna. Assim este meio científico se atualiza, nos últimos trezentos anos, “elevando a potência” os elementos que outrora constituíam o meio, classificando-os segundo sistemas e mensurando-os segundo modelos estatísticos e matemáticos, à medida que o ser humano encarna a divisa galileleana de “matematização da Natureza”.

Neste sentido, Janicaud entende o Método, enquanto “especificação altamente refletida e auto-controlada do método racional clássico”4, como efetuação, mas não efetuando nada em particular; apenas tornando possível um novo regime de poder da racionalidade, distinta da iniciada pelos gregos. Vemos se manifestar então uma característica decisiva do chamado progresso científico: “a partir do momento onde a potencialização epistêmica se dinamiza em potencialização operatória, a ciência integra o crescimento do poder, a seu projeto, como objetivo estratégico, e as efetuações aferentes, no interior e no exterior da ciência, ficam sem medida comum com os resultados precedentes.”


  1. HENRY, Michel. La Barbarie. Paris: Bernard Grasset, 1987 

  2. JANICAUD, Dominique. La puissance du rationnel. Paris: Gallimard, 1985. 

  3. Para Aristóteles, o virtual manifesta a primazia ontológica do ato; é um atual, mas suspenso, contendo todas as condições essenciais para sua efetiva atualização (Janicaud, 1985). Neste sentido é interessante comparar a proposta de Pierre Lévy ((LÉVY, Pierre. O que é o Virtual?. Rio de Janeiro: Editora 34, 1996 

  4. LADRIÈRE, Jean. Os Desafios da Racionalidade. Petrópolis: Vozes, 1979 

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Essência da Informática, Pierre Lévy