Com o recuo dos anos, é tentador dizer que esse projeto consistia em dar uma resposta científica, portanto materialista, ao velho problema filosófico das relações entre a alma e o corpo. Há muito de verdade nessa interpretação, mas é preciso tomar cuidado com as ilusões retrospectivas. Só muito mais tarde a revolução conceituai introduzida pela máquina de Turing serviu de base para uma solução funcionalista ao problema das relações entre a matéria e o pensamento. Apoiando-se nos trabalhos dos mestres da inteligência artificial, como Herbert Simon e Alan Newell, defendido e promovido por “filósofos do espírito” tão exaltados como Jerry Fodor e Zenon Pylyshyn, esse “funcionalismo computacional-representacional” equivale a tomar ao pé da letra a “metáfora do computador” — o computador, essa máquina de Turing encarnada em circuitos eletrônicos. A mente, ou antes cada uma de suas faculdades particulares (por exemplo: a capacidade de formar o conceito geral de triângulo e de subsumir ocorrências triangulares particulares sob esse conceito), é concebida como uma máquina de Turing que opera sobre as fórmulas de uma linguagem interna, privada, análoga a uma linguagem formal na lógica. Os símbolos (o que é escrito na fita da máquina) têm um triplo modo de existência. São materiais (encarnados na neurofisiologia) e, portanto, sujeitos às leis da física (em primeiro lugar, sujeitos às leis da neurofisiologia, mas supõe-se que esta possa ser reduzida àquela); têm uma forma e, como tais, são regidos por regras sintáticas (análogas às regras de inferência num sistema formal no sentido da lógica); são, enfim, dotados de sentido e têm um valor semântico. O abismo que parece separar o mundo físico do mundo das significações é atravessado graças ao nível intermediário, constituído pela sintaxe, ou seja, o mundo dos processos mecânicos, precisamente aquele em que a abstração que é a máquina de Turing opera. O paralelismo entre processos físicos submetidos a leis causais e processos mecânicos que realizam operações de cálculo, ou sintáticas, ou inferenciais perde seu mistério tão logo nos convencemos de que existem no mundo material máquinas de Turing encarnadas: o computador, sem dúvida, mas também todo [36] processo natural que possa ser considerado recursivo.1 O paralelismo entre sintaxe e semântica é, por seu lado, garantido pelos teoremas lógicos de consistência e de completude: os processos mecânicos que realizam as regras sintáticas mantêm a coerência interna das representações simbólicas, bem como sua adequação ao que elas representam. Manutenção, evidentemente, não quer dizer criação, e uma das pedras de tropeço desse modelo informático é a questão de saber como o sentido vem aos símbolos. O funcionalismo turinguiano constitui o cerne do que chamamos “cognitivismo”, que é ainda hoje o paradigma dominante nas ciências da cognição. Ele é objeto de numerosas e profundas críticas, provindo as mais severas delas, por vezes, daqueles que estiveram entre os seus fundadores.2

Mas na época, considerada neste livro, que é a dos pioneiros, a tese de Turing entusiasma os espíritos sobretudo pelo que diz das relações entre o pensamento e a máquina, mais do que das relações entre o pensamento e a matéria. Pelo menos é esta a leitura que vamos defender e ilustrar. O pensamento, essa atividade psíquica, essa faculdade do espírito que tem o conhecimento como objeto, nada mais é, afinal, do que um processo mecânico ordenado, um automatismo “cego” — devemos acrescentar “burro”? Trata-se de desvalorizar o homem? De elevar a máquina? Ou, pelo contrário, de fazer do homem um demiurgo capaz de criar um cérebro ou um espírito artificial? Cada uma destas interpretações tem, certamente, sua parte de verdade, maior ou menor conforme os indivíduos e as épocas.

Os adeptos, os ideólogos vão apresentar versões cada vez mais fortes da tese de Turing, expressas em termos cada vez mais imprecisos. Ela será apresentada como algo demonstrado: [37] “Descobertas lógicas provam que nada há de inconcebível na ideia de uma máquina (ou de uma matéria) pensante”: esse tipo de afirmação, literalmente falsa ou carente de sentido, já que, mais uma vez, não estamos aqui na ordem do demonstrável, pode ser encontrado até sob a pena dos melhores. Dir-se-á também: tudo o que a mente humana pode realizar e que pode ser descrito com precisão, sem ambiguidade, num número finito de palavras, é executável por um computador convenientemente programado; ou ainda (em 1965, escrito por Herbert Simon): “No espaço de vinte anos, as máquinas serão capazes de realizar todas as tarefas, sejam elas quais forem, que os homens podem realizar”.

Seria fácil ironizar. Os anos infligiram desmentido brutal a essa declaração presunçosa e vã. Não sejamos severos demais. Para realizar o que o foi, e que não é desdenhávcl, seria preciso o que Karl Popper chamou de um “programa metafísico de pesquisa”, espécie de ato de fé que fornece princípios, quadro de pensamento e, sobretudo, impulso à investigação científica. A tese de Turing, apesar, ou antes, por causa das derivas ideológicas a que facilmente se presta, foi capaz de unir energias e inteligências bastantes para que nascesse uma ciência materialista e mecanicista da mente.

As descobertas lógicas no sentido estrito teriam podido dar lugar a um tipo de leitura completamente diferente, e as melhores cabeças da época, como John von Neumann, o compreenderam bem. Se os teoremas de Turing mostram algo, é justamente que pensar não é necessariamente calcular. Seja a função numérica que, para uma dada máquina de Turing, assuma o valor 1 para todo argumento tal que a máquina pare, 0 no caso contrário. Podemos pensar esse ser matemático, formar clara e distintamente o seu conceito; e, no entanto, como a insolubilidade do problema da parada da máquina de Turing o exige, ele escapa ao cálculo. Não podemos, pois, conhecê-lo, se entendermos por conhecimento, em conformidade com o princípio do verum factum, o ato que consiste em se moldar no princípio gerador do objeto. O modelo mecânico de Turing teria podido servir para aprofundar a distinção fundamental entre [38] pensar e conhecer, própria da filosofia crítica. Podemos lamentar que ele tenha servido demasiadas vezes de pretexto para um confronto estéril entre aqueles para os quais o slogan “pensar é calcular” serve de sinal de aliança e os que ele faz sufocar de indignação.


  1. A questão: “É o mundo recursivo?” agita certos filósofos e lógicos. Cf., na França, os trabalhos de Jean-Paul Delahaye e de Jean-Pierre Dubucs. 

  2. É o caso de Hilary Putnam: cf. a evolução de suas ideias em Philosophical Papers, II, Cambridge University Press, 1975. 

Jean-Pierre Dupuy