Dupuy: Cibernética, uma “scienza nuova”?

Excertos de Jean-Pierre Dupuy, “Nas Origens das Ciências Cognitivas”. Tradução Roberto Leal Ferreira

A história começa em 1943. Estabelecer uma origem é sempre arbitrário, mas neste caso, menos do que em outros. Nesse ano fasto para a ciência da mente, eram publicados independentemente dois artigos cujos autores, três no caso do primeiro, dois no outro caso, constituirão o núcleo duro do movimento cibernético. Esses dois textos abrem-se para programas de pesquisa que, reunidos, definirão o projeto da nova disciplina.

O primeiro é assinado por Arturo Rosenblueth, Norbert Wiener e Julian Bigelow, e se intitula “Behavior, Purpose and Teleology”. Publica-o a revista Philosophy of Science, no número 1 de seu volume 10, nesse mês de janeiro de 1943. Wiener, que deve ser definido antes de tudo como um matemático aplicado -um “fabricador de modelos” -, trabalhava durante a guerra com Bigelow, um jovem engenheiro, nos problemas teóricos levantados pela defesa antiaérea. Essa pesquisa, realizada no MIT, era dirigida por Warren Weaver, o qual iria co-assinar com Claude Shannon sua famosa Mathematical Theory of Communication (1949).1 Bigelow, mais tarde, será recomendado por Wiener a John von Neumann e se tornará, em Princeton, o engenheiro chefe deste último na construção do grande computador, o JONIAC, que desempenhará um papel essencial no desenvolvimento da bomba H.2

O problema central da defesa antiaérea é que, como o alvo é móvel, é preciso prever a sua posição futura com base em uma informação parcial sobre a sua trajetória passada. Wiener desenvolveu uma teoria probabilista de predição, que se baseava em teoremas de ergodicidade, que deveria revolucionar as técnicas de processamento do sinal. Ao lado do que iria chamar-se teoria da informação, os problemas da defesa antiaérea faziam intervir o outro ingrediente básico da futura cibernética: o conceito de elo de retroalimentação (feedback), inerente a toda regulação de um sistema com base no afastamento observado entre a sua ação efetiva (output) e o resultado projetado (meta, goal).

Ora, Wiener, que era um espírito universal, a exemplo de von Neumann, há muito se interessava pela psicologia. Desde 1933, participava de um seminário da Faculdade de Medicina de Harvard e ali travara conhecimento com um fisiologista mexicano, Arturo Rosenblueth, interessado como ele pela filosofia das ciências.3 Rosenblueth trabalhava no laboratório de Walter Cannon e estava impressionado com a noção de homeostasia que este último extraíra de suas pesquisas fisiológicas, dando-lhe um campo de aplicação muito amplo, do organismo à sociedade. Wiener e Bigelow discutiram com Rosenblueth sobre a analogia que lhes ocorrera: será que se poderia aproximar sua conceitualização da defesa antiaérea dos processos em ação no movimento voluntário de um sujeito humano? Um doente cujo cerebelo apresenta uma lesão e que tenta levar aos lábios um copo d’água comunica à sua mão movimentos oscilatórios de amplitude crescente, que evocam irresistivelmente o comportamento de um elo de retroalimentação desregulado. As reflexões dos três amigos levaram ao artigo de 1943.

Tudo isso é muito conhecido, mas o exame do artigo reserva algumas surpresas ao leitor de hoje. Em primeiro lugar, pelo acanhamento da terminologia, que resulta do fato de que as categorias de informação, de comunicação, de organização ainda não haviam sido esclarecidas. O feedback é descrito como um retorno da energia do output sobre o input: crime de lesa-cibernética avant la lettre! Mas sobretudo, o conjunto exala um perfume de behaviorismo que não deixa de causar admiração, quando sabemos que, de todas as escolas de psicologia, essa foi aquela com que a cibernética menos se dignou a dialogar. O artigo adota como primeiro objetivo “definir o estudo comportamental (behavioristic) dos fenômenos naturais e classificar os comportamentos”. O comportamento de um objeto é definido como “toda modificação que pode ser notada de fora” (grifo meu). O método preconizado só se preocupa com relações do objeto com seu ambiente e, contrariamente ao seu oposto, a “análise funcional”, “desdenha, no objeto, a sua estrutura específica e a sua organização própria”.

A cibernética, tal como se vê antecipada no artigo de 1943, trata inegavelmente seus objetos de estudo como dispositivos que transformam mensagens de entrada (input) em mensagens de saída (output). Esta é uma definição que encontraremos ainda com todas as letras da obra tardia de Wiener, God and Golem, Inc. (1964). O que a impede, porém, de se reduzir a um mero behaviorismo que obedeça a um esquema estímulo-resposta é precisamente a noção de feedback. Graças a esse dispositivo, o objeto é capaz de mudar a relação que estabeleceu entre input e output, entre estímulo e resposta. Para o observador que optou por permanecer no exterior do objeto, tudo se passa como se este tivesse a capacidade de modificar a sua resposta a um estímulo dado, e isto a fim de alcançar determinado objetivo. Tudo se passa, pois, aparentemente, como se o objeto fosse capaz de perseguir uma finalidade dada, aprendendo a ajustar seu comportamento em vista dos erros que comete. O fundador do movimento neocibernético conhecido com o nome de “segunda cibernética”, Heinz von Foerster, exagerará, mais tarde, a importância dessa ruptura com o behaviorismo, censurando na primeira cibernética o fato de ter permanecido muito aquém das possibilidades assim abertas. Contraporá às “máquinas triviais” do behaviorismo, submetidas a uma regra “estímulo-resposta” fixada de uma vez por todas, a imensa riqueza de comportamentos que pode manifestar uma “máquina não trivial”, dotada, a exemplo da máquina de Turing, de um estado interno e capaz de modificar este em virtude do input e do estado interno no período anterior.4 Uma máquina não trivial nada mais é do que o que os lógicos chamam um “autômato de estados finitos”. Para valores relativamente modestos dos números de estados internos e de inputs possíveis, ela exibe, por explosão combinatória, uma complicação de comportamento propriamente inextricável. É essa complicação que fará que von Foerster diga que a máquina não trivial processa informação, ao passo que a máquina trivial behaviorista reage a um sinal.

Não importa. O leitor de hoje fica impressionado com o tom behaviorista do artigo de 1943. A insistência deste último em não levar em conta a organização interna do objeto pode surpreender a todos aqueles que da cibernética só conheçam a sua segunda fase, inaugurada pelos trabalhos de von Foerster e de Ross Ashby, culminando nas teorias da organização biológica de Humberto Maturana e de Francisco Varela.5 A ênfase é, pelo contrário, dada então à coerência interna e à “autonomia” do objeto, organismo ou máquina complexa, e chega-se até a reduzir suas relações com o meio ambiente a meras perturbações, em nenhum caso portadoras de informação.

E interessante compreender o que motiva essa surpresa. A imagem que a cibernética deixou — tanto entre os que ainda a reivindicam quanto entre os seus detratores — é a de uma scienza nuova conquistadora, que se coloca como rival da física e tem como ambição, substituindo a matéria pela forma, pôr fim à secular dominação da “rainha das ciências”. Philippe Breton e muitos outros comentadores propõem uma interpretação do artigo de 1943 que se ajusta com essa imagem. O que esse texto fundador, segundo eles, ordena que se deixe de lado é o “conteúdo”, ou seja, a natureza física dos constituintes e de suas relações, e isso a fim de abstrair a forma destas últimas. Por exemplo, empenham-se em descobrir um mesmo dispositivo formal de feedback num animal e numa máquina, ainda que o primeiro seja materializado por proteínas e o segundo, por tubos eletrônicos. Daí as conclusões do artigo, de “que uma análise comportamental uniforme é aplicável ao mesmo tempo às máquinas e aos organismos vivos”. Daí também que a categoria de “teleologia”, entendida como “finalidade (purpose) ordenada por retroalimentação negativa” pode aplicar-se tanto às primeiras quanto aos segundos. Assim entendido, segundo Philippe Breton, esse texto “marca uma ruptura essencial com as concepções da ciência moderna, ruptura cujos efeitos ainda se perpetuam amplamente no pensamento atual”.6

Isso é um exagero. Os fundadores da cibernética não tinham consciência de construir uma scienza nuova. A revolução que constituiu, na história do pensamento, o advento da ciência nova estava longe às costas deles, como vimos no capítulo anterior. O fato de abstrair a forma dos fenômenos e, com isso mesmo, de se tornar capaz de balizar isomorfismos entre domínios diferentes é o procedimento modelizador por excelência, é o próprio procedimento científico. Se esse procedimento permite propor uma teoria unificada da máquina e do vivente quanto à categoria de finalidade, pensada em termos mecanicistas e rebatizada como “teleologia”, trata-se, sem dúvida, de um avanço espetacular da ciência no que se refere à sua extensão; não se trata, de modo nenhum, de uma ruptura. Os cibernéticos, em particular, não tinham a pretensão de romper com a física, nem de ultrapassá-la. Pelo contrário, era no seu âmbito, aquele em que haviam recebido sua formação científica, que pretendiam situar as novas noções. Teremos a oportunidade de verificá-lo repetidas vezes.

A vontade mostrada de permanecer no exterior do objeto e de ignorar seu “conteúdo” oculta, na verdade, outra coisa. A leitura das Atas das Conferências Macy e o que ela nos ensina acerca das atitudes profundas dos autores do artigo de 1943 ditam-nos uma resposta que se ajusta melhor à letra desse artigo. Poderíamos lê-la nas muitas discussões que opuseram os cibernéticos à psicanálise, acerca da noção de inconsciente, mas encontramo-la com todas as letras por ocasião de um choque entre Rosenblueth, apoiado por Bigelow, e um especialista em comunicação animal, Herbert Birch. Isso aconteceu durante a Oitava Conferência Macy, em 1951. Birch acaba de passar em revista diversos casos do que é chamado de “comunicação” entre os insetos e entre os vertebrados inferiores. A mensagem que ele martelou ao longo desses exemplos é a de que por trás dos comportamentos impressionantes de complexidade aparente, e ainda mal-entendidos, devemos ver apenas comportamentos, precisamente, estereotipados, e que seria inútil recorrer a capacidades de inteligência e de compreensão próprias de uma “verdadeira” comunicação. Para ser mais convincente, tomou o seguinte exemplo, que não lhe será perdoado. A vieira é um dos pratos favoritos da estrela-do-mar. Toda estrela-do-mar situada nas proximidades de uma vieira provoca nesta última uma reação de fuga. Dir-se-á que a primeira “se comunicou” com a segunda? Se sim, continuar-se-á a dizer o mesmo quando se substitui a estrela-do-mar por um concentrado de cozido de estrela-do-mar, que produz exatamente o mesmo efeito? Birch termina a sua exposição com o exame das características distintivas das “verdadeiras” comunicações, que só observamos, segundo ele, a partir dos mamíferos superiores e culminam no homem: elas implicam antecipação, intencionalidade, simbolização e requerem capacidades de aprender, de perceber, de tecer relações sociais. Rosenblueth explode. Essas distinções são carentes de sentido, explica ele, substancialmente. Elas se baseiam em noções — inteligência, consciência, memória, aprendizagem, antecipação, intencionalidade, conteúdo — que remetem ao que se passa na mente (mind) dos sujeitos e não podem ser objeto de nenhuma medição: elas não têm nenhuma pertinência para o problema da comunicação. Os únicos contatos que podemos ter com os outros passam por seu comportamento: é a única coisa que podemos ver, podemos julgar e que pode ter um efeito sobre nós. Sem dúvida, admite ele, quando descrevemos o comportamento dos seres vivos, quer se trate de um humano, quer de um organismo inferior, quer até de uma máquina, servimo-nos — o que às vezes é até indispensável — de uma terminologia “mentalista”, como se neles postulássemos um “espírito”. Isso pode não ser constrangedor, com uma dupla condição: que o consideremos como uma mera comodidade de linguagem e compreendamos que isso não tem pertinência para a questão que nos interessa: a comunicação. Neste sentido, podemos muito bem dizer que uma máquina tem uma “memória”, que ela “aprende”. Isso não provoca problemas, enquanto nos referimos apenas a algo de objetivo, de mensurável, que não tenha nenhuma relação com a nossa experiência interior.7

A ruptura com o behaviorismo deve, portanto, ser muito relativizada. A ciência da mente que a cibernética pretende construir é, na terminologia de hoje, decididamente “eliminacionista”. Os “estados mentais” que a psicologia comum ou “ingênua” invoca para dar conta dos comportamentos, como as crenças, os desejos, a vontade, as intenções etc., devem ser banidos da explicação científica. A cibernética de Wiener e de Rosenblueth é fundamentalmente não mentalista. Nem sempre isso foi suficientemente compreendido, a começar pelos cibernéticos franceses que tiveram conhecimento do artigo de 1943 na tradução publicada no número 2 dos Etudes philosophiques, de 1961. O título “Behavior, Purpose and Teleology” transformava-se em: “Comportamento, intenção, teleologia”. A tradução de purpose por intenção (intention) é um contra-senso, porque dá mostras de um mentalismo que se trata justamente de afastar, já que purpose designa aqui uma finalidade não intencional. O próprio Heinz von Foerster muitas vezes censurará à primeira cibernética, e à inteligência artificial que se lhe seguiu, o fato de ter falado das máquinas em termos antropomórficos. Isso é estar cego para o fato de que não é a máquina que os primeiros cibernéticos dotam de humanidade — é o humano que, deliberadamente, eles assimilam à máquina. A distinção, tão fundamental na história da psicologia, entre comportamento voluntário e comportamento reflexo perde com eles todo sentido, bem como a diferença entre consciência e inconsciente. A assimilação do homem à máquina, porém, não é entendida como uma redução. Pois a máquina é o modelo — nos dois sentidos da palavra.


  1. Cf. S. Heims, op. cit., 1980, p.183-4. 

  2. Cf. a introdução de A. Burks à sua edição de Theory of Self-Reproducing Automata, de John von Neumann, University of Illinois Press, 1966. 

  3. Cf. S. Heims, Gregory Bateson and the Mathematicians: From Interdisciplinary Interaction to Societal Functions, Journal of the History of the Behavioral Sciences, n. 13, p.141-59 (p.143), 1977; e S. Heims, op. cit., 1991, p.289, nota 6. 

  4. H. von Foerster, Molecular Ethology, 1970, republicado in Observing Systems, Intersystems Publications, 1981. 

  5. Por exemplo: Francisco Varela, Principles of Biological Autonomy, Elsevier North Holland, 1979 (trad, francesa de P. Bourgine e P. Dumouchel: Autonomie et connaissance, Seuil, 1989). 

  6. Ph. Breton, La cybernétique et les ingénieurs dans les années cinquante, Culture Technique, n.12, p. 158, março de 1984. 

  7. Macy 8, p.168-71