Heidegger (GA41) – O matemático

Martin Heidegger. Que é uma coisa? Doutrina de Kant dos princípios transcendentais. Lisboa: Edições 70

A nossa expressão “o matemático” tem sempre dois sentidos: significa, em primeiro lugar, o que se pode aprender do modo já referido e somente desse modo; em segundo lugar, o modo do próprio aprender e do proceder. O matemático é aquilo que há de manifesto nas coisas, em que sempre nos movimentamos e de acordo com o qual as experimentamos como coisas e como coisas de tal gênero. O matemático é a posição-de-fundo em relação às coisas na qual as coisas se nos pro-põem, a partir do modo como já nos foram dadas, têm de ser dadas e devem ser dadas. O matemático é, portanto, o pressuposto fundamental do saber acerca das coisas. (págs. 81-82)


Se tivermos uma visão de conjunto de tudo o que foi dito, somos capazes de conceber mais rigorosamente a essência do matemático. Até ao momento, ele foi caracterizado de uma forma geral como um tomar conhecimento de tal ordem que o que ele tem o dá a si mesmo a partir de si mesmo, de modo que dá a si mesmo aquilo que já tem. Agora, reunimos a determinação total da essência do matemático em pontos individuais:

1) Como um «mente concipere», o matemático é um projeto acerca da coisalidade da coisa que, ao mesmo tempo, ultrapassa a própria coisa. O projeto abre, pela primeira vez, um espaço de jogo no interior do qual as coisas, quer dizer, os fatos, se mostram por si mesmas.

2) Neste projeto é posto «aquilo pelo que» as coisas são propriamente tidas, «aquilo enquanto» e como elas devem ser antecipadamente apreciadas. Um tal apreciar e «tomar por» diz-se, em grego, axioou. As determinações e os enunciados que, no projeto, são antecipantes, são axiomata. Por isso, Newton intitulou o parágrafo em que colocou a determinação fundamental da coisa como coisa movida, «Axiomata, sive leges motus». O projeto é axiomático. Na medida em que cada conhecimento e reconhecimento se exprime em proposições, o reconhecimento tomado e posto no projeto matemático é de tal ordem que, antecipadamente, põe as coisas no seu fundamento. Os axiomas são proposições-de-fundo.

3) O projeto matemático, enquanto axiomático, é um «prévio agarrar» a essência da coisa, os corpos; assim, é pré-indicado em esboço como se estrutura cada coisa e cada relação de uma coisa com outra.

4) Este esboço fornece, ao mesmo tempo, o critério que permite circunscrever o domínio que, de agora em diante, engloba todas as coisas de uma tal essência. A natureza já não é mais o que, como faculdade interna do corpo, determina a forma do seu movimento e do seu lugar. Natureza é agora o domínio, esboçado no projeto axiomático, da conexão dos movimentos espaciais uniformes, no qual, somente, os corpos nele inseridos podem ser corpos.

5) Agora, o domínio da natureza, determinado em esboço nesta forma axiomática, exige também para os corpos e corpúsculos, que nele se podem encontrar, um modo de acesso que seja adequado aos corpos axiomaticamente pré-determinados. O modo de questionamento da natureza e da sua determinação pelo conhecimento já não é mais regulado pelas opiniões e conceitos tradicionais. Os corpos não têm propriedades, forças e poderes escondidos. Os corpos da natureza são apenas como se mostram no domínio do projeto. Agora, as coisas mostram-se somente nas relações de lugar e de tempo, de quantidade de massa e de atividade das forças. O modo como se mostram é pré-indicado pelo projeto; deste modo, ele determina também a forma do tomar e do reconhecer aquilo que se mostra por si mesmo, a experiência, o experiri. Mas, na medida em que agora o reconhecimento está pré-determinado pelo esboço do projeto, o questionar pode ser determinado de tal modo que põe antecipadamente as condições a partir das quais a natureza deve responder de tal ou tal modo. Com base no matemático, a experientia tomou-se experimentação, em sentido moderno. A ciência moderna é experimental na base do projeto matemático. O impulso experimentador em direção aos fatos é uma consequência necessária do ultrapassar matemático antecipado, de todos os fatos. Mas onde este ultrapassar, através do projeto, se interrompe ou enfraquece, os fatos são recolhidos somente por eles mesmos e daí resulta o positivismo.

6) Na medida em que o projeto, de acordo com o sentido que lhe é próprio, estabelece uma uniformidade entre todos os corpos, a partir da relação deles com o espaço, o tempo e o movimento, possibilita e, ao mesmo tempo, exige, enquanto modo de determinação essencial das coisas, uma medida universalmente idêntica, quer dizer, uma medição de acordo com o número. O tipo de projeto matemático próprio do corpo newtoniano conduz à constituição de uma «matemática» determinada, em sentido restrito. O fato de a matemática se ter agora tomado um meio de determinação essencial não é o fundamento da nova configuração da ciência moderna. Trata-se, antes, do seguinte: o fato de uma matemática de uma espécie determinada ter podido e devido entrar em jogo é consequência do projeto matemático. A fundação, por Descartes, da geometria analítica, a fundação, por Newton, do cálculo dos fluxos, a fundação simultânea do cálculo diferencial, por Leibniz, todas estas novidades, este matemático em sentido restrito, tomaram-se possíveis, pela primeira vez e, antes de mais, necessárias, tendo por base o traço matemático fundamental do pensamento em geral.