O que é a Filosofia da Tecnologia?

Conferência pronunciada para os estudantes universitários de Komaba, junho, 2003, sob o título de “What is Philosophy of Technology?” .Tradução de Agustín Apaza, com revisão de Newton Ramos-de-Oliveira. ))

Andrew Feenberg

Nosso tema é hoje a filosofia da tecnologia. Tentarei abordá-lo de dois pontos de vista, em primeiro lugar, da perspectiva histórica e depois darei uma olhada nas opções contemporâneas no campo das diferentes teorias que se encontram em discussão.

Antes de começar, gostaria de situar brevemente para vocês o campo de estudo. Vocês já devem ter alguma familiaridade com a filosofia da ciência, visto que este é um dos campos mais prestigiados da filosofia. Está relacionado com a verdade da ciência, com a validade das teorias e a experimentação. Nós chamamos essas questões de “epistemológicas”, itens que pertencem à teoria do conhecimento. A ciência e a tecnologia partem do mesmo tipo de pensamento racional baseado na observação empírica e conhecimento de causalidade natural, mas a tecnologia não está relacionada com a verdade e, sim, com a utilidade. Onde a ciência busca o saber, a tecnologia busca o controle. Não obstante, há algo mais nesta história que este simples contraste.

Nas sociedades tradicionais, o modo de pensar das pessoas está formado por costumes e mitos que não podem ser explicados nem justificados racionalmente. Portanto, as sociedades tradicionais proíbem certos tipos de perguntas que desestabilizariam seu sistema de crenças. As sociedades modernas emergem da liberação do poder de questionar estas formas tradicionais de pensamento. A Ilustração Europeia do século XVIII exigiu que todos os costumes e instituições se justifiquem como úteis para a humanidade. Sob o impacto dessa demanda, a ciência e a tecnologia se tornaram a base para as novas crenças. Eles reformam a cultura gradualmente para ser o que pensamos como “racional.” Consequentemente, a tecnologia torna-se onipresente na vida cotidiana e os modos técnicos de pensamento passam a predominar acima de todos os outros. Numa sociedade moderna e madura como a japonesa, a tecnologia é compreendida como os costumes e mitos da sociedade tradicional anterior. Alguém poderia dizer que a racionalidade tecnocientífica se tornou uma cultura nova.

Esta cultura é claramente “útil” em todos seus detalhes no sentido que a Ilustração exigiu, mas está agora abrangendo aquelas questões maiores que podem ser perguntadas como um todo por seu valor e viabilidade. Nós podemos julgar isso como mais ou menos digno, mais ou menos eticamente justificado, mais ou menos completo. A modernidade autoriza a si mesma e até exige tal julgamento. Foi assim que aconteceu. Agora nós nos movemos para além da utilidade no sentido estrito da pergunta quanto ao tipo de mundo e ao modo de vida que emerge em uma sociedade moderna. Na medida em que tal sociedade tem base tecnológica, os problemas que surgem nesse questionamento referem-se ao campo da filosofia da tecnologia. Nós precisamos nos entender hoje no meio da tecnologia e o conhecimento propriamente técnico não pode nos ajudar. A filosofia da tecnologia pertence à autoconsciência de uma sociedade como a nossa. Nos ensina a refletir sobre o que tomamos como assegurado, especificamente a modernidade racional..

O Japão é um lugar particularmente conveniente para a filosofia de tecnologia embora em minha opinião o campo aqui ainda esteja pouco desenvolvido. Na era de Meiji o Japão era um tipo de teste para a universalização das realizações Ocidentais. Sua modernização rápida pôs-se em questão quase imediatamente quando pensadores contrastaram o rápido desaparecimento dos modos tradicionais diante das novas maneiras importadas do Ocidente e resultantes do avanço tecnológico. Hoje o Japão enfrenta os mesmos problemas que as outras sociedades modernas, mas potencialmente com mais distante da modernidade dada sua história de país não-ocidental. Espero que esta diferença seja um ponto de vista de Arquimedes para uma reflexão original da tecnologia.

Tendo apresentado brevemente o campo, vejamos agora a perspectiva histórica de suas origens. Para isso nós temos que voltar para a Grécia antiga. Como você verá, a pergunta sobre a tecnologia é levantada nas próprias origens da filosofia Ocidental, não como eu descrevi há pouco, senão a um nível mais fundo. A filosofia começa interpretando o mundo em termos do fato fundamental de que a humanidade é um tipo de animal que trabalha constantemente para transformar a natureza. Este fato fundamental molda as distinções básicas que prevalecem ao longo da tradição da filosofia Ocidental.

A primeira destas distinções está entre o que os gregos chamaram de physis e poiesis. Physis geralmente é traduzido como natureza. Os gregos entendiam a natureza como um ser que se cria a si mesmo, como aquilo que emerge de si mesmo. Mas há outras coisas no mundo, coisas que dependem de que algo passe a existir. Poiesis é a atividade prática de fazer da qual os seres humanos se ocupam quando produzem algo. Nós chamamos estes seres criados de artefatos e incluímos entre eles os produtos da arte, do artesanato, e da convenção social.

A palavra techne na Grécia antiga significa o conhecimento ou a disciplina que se associa com uma forma de poiesis. Por exemplo, a medicina é uma técnica cujo objetivo é curar o doente; a carpintaria uma técnica cujo propósito é construir a partir da madeira. Na visão grega das coisas, cada técnica inclui um propósito e um significado dos artefatos a cuja produção se orientam. Note-se que para os gregos, as technai mostram a “maneira correta” de fazer coisas de maneira muito forte, até mesmo num sentido objetivo. Embora os artefatos dependam da atividade humana, o conhecimento contido nas technai não é matéria de opinião ou intenção subjetiva. Até mesmo os propósitos das coisas que são feitas compartilham dessa objetividade na medida que estão definidas pelas technai. A palavra techne está na origem das palavras modernas para a técnica e a tecnologia nas línguas ocidentais, embora tenham um significado um pouco diferente, como o veremos.

A segunda distinção fundamental está entre a existência e a essência. A existência responde à pergunta se algo é ou não é. A essência responde à pergunta o que a coisa é. “Aquele que é” e “aquele é o quê?” parecem ser duas dimensões independentes do ser. Na tradição da filosofia ocidental, a existência se torna um conceito bastante nebuloso. Não é realmente claro como defini­lo. Nós sabemos a diferença entre o que existe e o que não existe, por exemplo, como presença imediata ou ausência, mas não há muito mais a se dizer. A maior atenção é dada à essência e a seus conceitos sucessores como desenvolvido pelas ciências porque este é o conteúdo do conhecimento.

Estas distinções são evidentes por si mesmas. Elas formam a base de todo pensamento filosófico do Ocidente. Tenho certeza que há também distinções equivalentes no pensamento asiático tradicional. Mas a relação entre estas duas distinções não é óbvia, é na verdade enigmática. A fonte desse quebra-cabeça é o entendimento grego de techne, o ancestral da tecnologia moderna. Claro que os gregos não tiveram a tecnologia em nosso sentido moderno, mas eles tiveram todos os tipos de técnicas e ofícios que eram o equivalente em sua época à forma como a tecnologia é para nós hoje. E, por mais estranho que pareça, eles conceberam a natureza no modelo dos artefatos produzidos pela sua própria atividade técnica.

Para mostrar isto, analisarei a relação entre as duas distinções básicas que introduzi, physis e poiesis, existência e essência. Em poiesis, a distinção entre existência e essência é real e óbvia. Uma coisa existe primeiro como uma ideia e só depois passa a existir pela fabricação humana. Mas note-se que, para os gregos, a ideia do artefato não é arbitrária ou subjetiva mas pertence a uma techne. Cada techne contém a essência da coisa de ser feito anterior ao ato de fazer. A ideia, a essência da coisa é assim uma realidade independente da coisa em si e do fabricante da coisa. O que é mais, como vimos, o propósito da coisa feita é inclui-se em sua ideia. Em suma, embora os humanos façam artefatos, eles o fazem assim de acordo com um plano e para um propósito que é um aspecto objetivo do mundo.

Por outro lado, a distinção entre existência e essência não é óbvia para as coisas naturais. A coisa e sua essência emergem juntas e existem juntos. A essência não parece ter uma existência separada. A flor emerge ao longo do que se vem fazendo numa flor: o que é e o que tem “acontece”, de certo modo, simultaneamente. Nós podemos construir um conceito da essência da flor depois, mas este é o nosso fazer, não algo essencial à natureza como é aos artefatos. Na verdade, a própria ideia de essência das coisas de natureza é nossa construção. O que jaz na base de ciência, episteme em grego, é o conhecimento das coisas. Ao contrário do conhecimento que está ativo na techne que é essencial aos objetos cujas essências define, o episteme; o conhecimento de natureza, parece ser um fazer puramente humano ao qual a própria natureza seria indiferente. É isto? É aqui que a história se torna interessante.

Esta diferença da relação entre a essência da physis e da poiesis é importante para uma compreensão da filosofia grega e, na realidade, de toda a tradição filosófica, motivo pelo qual os filósofos tanto tentaram sua ultrapassagem. Você deve lembrar-se da teoria das ideias de Platão, o fundamento da tradição. Para Platão o conceito da coisa existe num domínio ideal anterior à coisa em si, que nos permite conhecer a coisa. Note como esta teoria é semelhante a nossa análise da techne e que a ideia é independente da coisa. Mas, Platão não reserva esta teoria para os artefatos; antes, a aplica para todos os seres. Ele apoia-se na estrutura da techne para explicar não só artefatos, mas também a própria natureza.

Platão entende a natureza como dividida em existência e essência da mesma maneira como acontece com os artefatos e isto se torna a base para a ontologia grega. Isto tem muitas consequências importantes. Nessa concepção não há nenhuma descontinuidade radical entre a fabricação técnica e a autoprodução natural porque ambos partem da mesma estrutura. Techne, como se pode lembrar, inclui um propósito e um significado para os artefatos. Os gregos levam estes aspectos da techne ao reino da natureza e veem toda a natureza em termos teleológicos. A essência das coisas naturais inclui um propósito da mesma forma como acontece com a essência dos artefatos. O mundo é assim um lugar cheio de significados e intenções. Esta concepção do mundo chama a uma compreensão correspondente de homem. Nós os humanos não somos os mestres de natureza, mas trabalhamos com seus potenciais para trazer à fruição um mundo significativo. Nosso conhecimento deste mundo e nossa ação nele não são arbitrários mas são, de algum modo, a realização do que se esconde na natureza.

Que conclusões se deduzem dessas considerações históricas da filosofia grega antiga? Farei uma provocação e direi que a filosofia da tecnologia começa com os gregos e é, na verdade, o fundamento de toda a filosofia Ocidental. Afinal de contas, os gregos interpretam o ser como tal através do conceito de fabricação técnica. Isto é irônico. A tecnologia tem um baixo estado na alta cultura das sociedades modernas, mas estava, de fato, já na origem dessa cultura e, a se crer nos gregos, contém a chave da compreensão do ser como um todo.

Agora nós vamos pular aos tempos modernos e falar sobre o estado da tecnologia em nossa era. Vocês estão provavelmente familiarizados com os fundadores de pensamento moderno, Descartes e Bacon. Descartes nos prometeu que nos tornaríamos “os mestres e senhores da natureza” através do cultivo das ciências, e Bacon como é bem conhecido reivindicou que “Conhecer é poder.” Claramente nós estamos em um mundo diferente dos gregos. Temos um senso comum muito diferente dos gregos assim coisas que a eles pareciam óbvias não são óbvias para nós. Claro que nós compartilhamos com eles as distinções fundamentais entre as coisas que se fazem, na natureza, e as coisas que são feitas, os artefatos, e entre a essência e a existência. Mas nossa compreensão destas distinções é diferente da deles. Isto é especialmente verdade com o conceito de essência. Para nós as essências são convencionais em vez de reais. O significado e os fins das coisas são algo que nós criamos e não algo que descobrimos. A brecha entre homem e mundo se alarga consequentemente. Nós não estamos em casa no mundo, nós conquistamos o mundo. Esta diferença está relacionada com a nossa ontologia básica. A pergunta que nós nos dirigimos ao ser não é o que é, mas como funciona. A ciência responde a estas perguntas antes que revela as essências no sentido antigo do termo grego.

Note que a tecnologia é ainda o modelo do ser nesta concepção moderna. Isto estava particularmente claro no Ilustração durante o século XVIII, quando os filósofos e cientistas desafiaram os sucessores medievais da ciência grega com a nova visão mecanicista do mundo de Galileu e Newton. Esses pensadores exploraram a maquinaria do ser. Eles identificaram o funcionamento do universo com um mecanismo de relógio. Assim, ainda que possa parecer estranho, a estrutura subjacente da ontologia grega sobreviveu à derrota de seus princípios.

No contexto moderno, a tecnologia não realiza os objetivos essenciais inscritos na natureza do universo, como o faz a techne. Aparece agora como puramente instrumental, como isenta de valores. Não responde aos propósitos inerentes, mas somente servem como meios e metas subjetivas que nós escolhemos a nosso bel prazer. Para o senso comum moderno, meio e fins são independentes um do outro. Eis aqui um exemplo bem cru. Na América dizemos que as “Armas não matam as pessoas, as pessoas matam as pessoas.” Armas são um meio independente dos fins trazidos a ele pelo usuário, seja roubar um banco, seja executar a lei. A tecnologia, dizemos que é neutra, quer dizer que não tem qualquer preferência entre os vários usos possíveis a que possa ser posta. Esta é a filosofia instrumentalista da tecnologia que é um tipo de produto espontâneo de nossa civilização, irrefletidamente assumido pela maioria das pessoas.

A tecnologia nesse esquema de coisas trata a natureza como matérias-primas, não como um mundo que emerge de si mesmo, uma physis, mas antes como materiais que esperam a transformação em o que quer que nós desejemos. Este mundo é compreendido mecanicamente e não teleologicamente. Está ali para ser controlado e usado sem qualquer propósito interno. O Ocidente fez avanços técnicos enormes com base nesse conceito de realidade. Nada nos contém em nossa exploração do mundo. Tudo é exposto a uma inteligência analítica que se decompõe em partes utilizáveis. Nossos meios cada vez ficaram mais eficientes e poderosos. No século XIX ficou comum ver a modernidade como um progresso interminável para o cumprimento das necessidades humanas por mediação do avanço tecnológico. Foi essa noção que cativou a imaginação dos japoneses na era de Meiji e conduziu à modernização da sociedade japonesa no século XX.

Mas, para quais fins? As metas de nossa sociedade não podem ser longamente especificadas em algum tipo de conhecimento, uma techne ou uma episteme, como eram para os gregos. Elas permanecem como escolhas arbitrárias puramente subjetivas e nenhuma essência nos guiam. Isto trouxe-nos a uma crise da civilização da qual não parece existir fuga: sabemos como chegar lá, mas não sabemos por que vamos ou até mesmo para onde. Os gregos viviam em harmonia com o mundo enquanto nós estamos alienados dele por nossa mesma liberdade em definir nossos propósitos como nos aprazem. Enquanto não se podia atribuir grande dano à tecnologia, esta situação não levava a dúvidas sérias. Claro que sempre havia protestos literários contra a modernização. No Japão você tem Tanizaki e sua obra maravilhosa “Em Louvor das Sombras.” Mas quando o século XX avança das guerras mundiais para os campos de concentração e para catástrofes ambientais, fica mais difícil de ignorar a estranha falta de sentido da modernidade. Porque estamos sem saber aonde estamos indo e porque a filosofia da tecnologia emergiu em nossos tempos como uma crítica da modernidade. Quero voltar agora à perspectiva contemporânea de filosofia da tecnologia que prometi do início e esboçar os tipos de debates dos quais os filósofos se ocupam hoje.

Eu organizarei meus comentários ao redor do seguinte quadro: Como se pode ver, a tecnologia está definida aqui ao longo de dois eixos que refletem sua relação aos valores e aos poderes humanos. O eixo vertical oferece duas alternativas, ou a tecnologia é neutra de valor, como a assumida pela Ilustração, ou está carregado de valor como os gregos o acreditaram que, como veremos, ainda são assim consideradas por alguns filósofos da tecnologia. A escolha não é óbvia. De uma perspectiva, um dispositivo técnico é simplesmente uma concatenação de mecanismos causais. Não há qualquer quantidade de estudos científicos que possa nela encontrar algum propósito. Mas, para outros pontos de vista, isso não chega ao ponto essencial. Afinal de contas, nenhum estudo científico achará em uma nota 1000 yens o que a transforma em dinheiro. Nem tudo é uma propriedade física ou química da matéria. Talvez as tecnologias, como as notas do banco, tenham um modo especial de conter o valor neles mesmos como entidades sociais.

A Tecnologia é: Autônoma Humanamente Controlada
Neutra (separação completa entre meios e fins) Determinismo (por exemplo: a teoria da modernização) Instrumentalismo (fé liberal no progresso)
Carregada de Valores (meios formam um modo de vida que inclui fins) Substantivismo (meios e fins ligados em sistemas) Teoria Crítica (escolha de sistemas de meios-fins alternativos)

As tecnologias no eixo horizontal estão consideradas como autônomo ou humanamente controláveis. Dizer que a tecnologia é autônoma não quer dizer que ela se faz a si mesma. Os seres humanos ainda estão envolvidos, mas a questão é: eles têm, de fato, a liberdade para decidir como a tecnologia será desenvolvida? O próximo passo depende da evolução do sistema técnico até nós? Se a resposta é “não”, então pode-se dizer justificadamente que a tecnologia é autônoma no sentido de que a invenção e o desenvolvimento têm suas próprias leis imanentes, as quais os seres humanos simplesmente seguem ao interagirem nesse domínio técnico. Por outro lado, a tecnologia pode ser humanamente controlável enquanto se pode determinar o próximo passo de evolução conforme nossas intenções.

Agora permitam-me voltar às quatro caixas definidas pela interseção desses eixos.

Nós já discutimos o instrumentalismo, o ocupante do quadro em que o controle humano e a neutralidade de valor se entrecortam. Esta é a visão-padrão moderna segundo a qual a tecnologia é simplesmente uma ferramenta ou instrumento da espécie humana com os quais nós satisfazemos nossas necessidades. Como se pode observar no esquema, essa visão corresponde à fé liberal no progresso que foi uma característica proeminente da tendência dominante no pensamento Ocidental até bastante recentemente.

O próximo quadro acima à esquerda é chamada de “determinismo.” Esta é uma visão amplamente mantida nas ciências sociais desde Marx segundo a qual a força motriz da história é o avanço tecnológico. Os deterministas acreditam que a tecnologia não é controlada humanamente, mas que, pelo contrário, controla os humanos, isto é, molda a sociedade às exigências de eficiência e progresso. Os deterministas tecnológicos usualmente argumentam que a tecnologia emprega o avanço do conhecimento do mundo natural para servir às características universais de natureza humana, tais como as necessidades e faculdades básicas. Cada descoberta que vale a pena se endereça a algum aspecto de nossa natureza, preenche uma necessidade básica ou estende nossas faculdades. A comida e o abrigo são necessidades desse tipo e motivam alguns avanços. As tecnologias como o automóvel estendem nossos pés enquanto os computadores estendem nossa inteligência. A tecnologia enraíza-se por um lado no conhecimento da natureza e por outro nas características genéricas da espécie humana. Não depende de nós adaptar a tecnologia a nossos caprichos senão pelo contrário, nós devemos adaptarmo-nos à tecnologia como expressão mais significativa de nossa humanidade.

Estas duas visões, o instrumentalismo e o determinismo, têm uma história interessante no Japão. O estado Meiji começou com uma convicção instrumentista firme que pudesse adotar a tecnologia ocidental para aumentar seu poder sem sacrificar os valores tradicionais. Os meios tecnológicos importados do oeste serviriam as metas orientais. Esta era a ideia famosa de “wakon yosai.” Mas logo se revelou que a tecnologia estava minando os valores a que ela se supunha servir, o que confirmava a tese do determinismo tecnológico. Ainda está obscuro o que aconteceu uma vez que o Japão tem uma sociedade algo distintiva fundada em grande parte na tecnologia ocidental. Mas quanto distintiva é essa sociedade ou quanto reteve significativamente de sua originalidade . eis algo em disputa. Nesse tema, a competição fica em debate entre o instrumentalismo e o determinismo.

O quadro mais abaixo à esquerda do esquema tem o título de “substantivismo”. Trata-se de uma posição mais complexa e interessante do que aquelas que nós revimos até agora. O termo “substantivismo” foi escolhido para descrever uma posição que atribui valores substantivos à tecnologia em contraste com as visões como a instrumentalismo e a do determinismo nos quais a tecnologia é vista como neutra em si mesma. O contraste aqui está realmente entre dois tipos de valor. A tese da neutralidade atribui um valor à tecnologia, mas é um valor meramente formal, a eficiência, que pode servir a diferentes concepções de uma vida boa. Um valor substantivo, pelo contrário, envolve um compromisso com uma concepção específica de uma vida boa. Se a tecnologia incorpora um valor substantivo, não é meramente instrumental e não pode ser usado a diferentes propósitos de indivíduos ou sociedades com ideias diferentes do bem. O uso da tecnologia para esse ou aquele propósito seria uma escolha de valor específica em si mesma, e não só uma forma mais eficiente de compreender um valor pré-existente de algum tipo.

Esta distinção pode ser melhor esclarecida com exemplos.Tome-se a diferença extrema entre uma religião como Budismo ou Cristianismo e o dinheiro. As religiões baseiam-se em escolhas de valor substantivas, escolhas que refletem um estilo de vida preferido e excluem alternativas que desaprovam. O dinheiro é uma base puramente formal de ação social. Pode ser usado para comprar uma variedade infinita de coisas diferentes e pode integrar-se sem preconceitos a maneiras diferentes e contraditórias da vida. Em princípio, parece como se o dinheiro não trouxesse nenhum valor substantivo particular em si mesmo, mas pudesse servir a qualquer sistema de valor. A pergunta proposta pela teoria substantiva é se a tecnologia parece mais com a religião ou mais com o dinheiro, como há pouco descrito.

A resposta da teoria substantiva é que a tecnologia assemelha-se mais à religião. Quando você escolhe usar uma tecnologia, você não está apenas assumindo um modo de vida mais eficiente, mas escolhendo um estilo de vida diferente. A tecnologia não é assim simplesmente instrumental para qualquer valor que você possui. Traz consigo certos valores que têm o mesmo caráter exclusivo que a crença religiosa. Mas a tecnologia é ainda mais persuasiva que a religião desde que não requer qualquer crença para reconhecer sua existência e seguir suas ordens. Uma vez que uma sociedade assuma o caminho do desenvolvimento tecnológico será transformado inexoravelmente em uma sociedade tecnológica, um tipo específico de sociedade dedicada a valores tais como a eficiência e o poder. Os valores tradicionais não podem sobreviver ao desafio da tecnologia.

De fato, esta visão da tecnologia pode ser estendida também ao dinheiro. Embora possa parecer que o dinheiro seja um instrumento neutro para nossos propósitos, num exame mais minucioso perceberemos que é muito mais que isso. Dizemos que há coisas que o dinheiro não pode comprar, como o amor e a felicidade. No entanto, as pessoas sempre tentam comprá-los e se desapontam com os resultados. O amor comprado afinal de contas é algo bastante diferente da coisa real. Aqueles que fundam sua vida inteira no poder de dinheiro têm uma vida pobre. O dinheiro está bem em seu lugar, mas fora dele corrompe e diminui as pessoas e coisas. Assim, em certo sentido, o dinheiro também tem um valor substantivo e fundar um estilo de vida nele é uma escolha positiva e não a melhor de todas.

Você terá notado a semelhança entre a teoria substantiva da tecnologia e o determinismo. Na realidade a maioria dos teóricos substantivistas também são deterministas. Mas a posição que caracterizei como o determinismo é usualmente otimista e progressiva. Marx e os teóricos da modernização do período de pós-guerra acreditaram que a tecnologia era o criado neutro das necessidades humanas básicas. A teoria substantiva não faz tal suposição sobre as necessidades a que a tecnologia serve e não é otimista, mas crítica. Nesse contexto a autonomia da tecnologia é ameaçadora e malévola. A tecnologia uma vez libertada fica cada vez mais imperialista, tomando domínios sucessivos da vida social. Na imaginação mais extrema do substantivismo, no Admirável Mundo Novo como descrito por Huxley em seu famoso romance, a tecnologia apanha a humanidade e converte os seres humanos em meros dentes de engrenagem da maquinaria. Isso não é utopia o “não-lugar” de uma sociedade ideal, mas distopia . um mundo no qual a individualidade humana foi completamente suprimida. Huxley mostra pessoas produzidas pessoas em linhas de montagem para propósitos sociais específicos e condicionados a acreditar que essas coisas os adaptam à suas funções. Como certa vez Marshall McLuhan disse “as pessoas se reduziram a “órgãos sexuais do mundo da máquina.”

O teórico substantivo mais famoso foi Martin Heidegger, o maior filósofo alemão do século XX. Heidegger sustentou que a modernidade se caracteriza pelo triunfo da tecnologia sobre todos os valores. Ele notou que a filosofia grega já tinha fundado sua compreensão do ser no fazer técnico e argumentou que este ponto de partida culmina na tecnologia moderna. Onde os gregos tomavam a techne como o modelo do ser na teoria, fundamos o ser da técnica na prática. Nossas metafísicas não estão em nossas cabeças, mas consistem na real conquista técnica da terra. Essa conquista transforma tudo em matéria-prima para os processos técnicos, o que inclui os próprios seres humanos.

Não só constantemente obedecemos às ordens dos muitos sistemas técnicos aos quais estamos associados, também tendemos a nos vermos cada vez mais como dispositivos regulados através de disciplinas funcionais como as médicas, as psicológicas, as atléticas e outras. Eu não sei se vocês têm muitos desses livros no Japão como temos nos Estados Unidos, mas em nossas livrarias pode vocês acham o equivalente de manuais operacionais para todos aspectos da vida: como fazer amor e sexo, criar filhos, comer, exercitar-se, ganhar dinheiro, divertir-se e assim por diante. Somos nossas próprias máquinas.

Mas, Heidegger sustenta que, embora se possa controlar o mundo através de nossa tecnologia, não controlamos nossa própria obsessão com o controle. Alguma coisa jaz por detrás da tecnologia, um mistério que não podemos desvendar de nosso ponto de vista tecnológico. Aonde nós somos levados também é um mistério. A visão ocidental de Heidegger chegou ao fim de sua corda. Na sua última entrevista, ele declarou: “Só um Deus nos pode salvar”.

Vejamos agora ao último quadro, intitulado de “teoria crítica.” Este é a posição em que me coloco. A teoria crítica da tecnologia sustenta que os seres humanos não precisam esperar um Deus para mudar a sua sociedade tecnológica num lugar melhor para viver. A teoria crítica reconhece as consequências catastróficas do desenvolvimento tecnológico ressaltadas pelo substantivismo, mas ainda vê uma promessa de maior liberdade na tecnologia. O problema não está na tecnologia como tal, senão em nosso fracasso até agora em inventar instituições apropriadas para exercer o controle humano dela. Mas, poderíamos adequar a tecnologia submetendo-o a um processo mais democrático no design e desenvolvimento.

Considere o caso paralelo da economia. Um século atrás se acreditava que a economia não poderia ser democraticamente controlada, que era um poder autônomo e que operava de acordo com as leis inflexíveis. Hoje nós assumimos o contrário, que podemos influenciar a direção do desenvolvimento econômico de nossas instituições democráticas. A teoria crítica da tecnologia sustenta que chegou o momento de estender a democracia também à tecnologia. Assim, tentar de salvar os valores da Ilustração que guiaram o progresso durante os últimos cem anos sem ignorar a ameaça que tal progresso nos trouxe.

Como vocês podem ver no esquema, a teoria crítica compartilha as características do instrumentalismo e do substantivismo. Concorda com o instrumentalismo que a tecnologia é controlável em algum sentido, também concorda com o substantivismo que a tecnologia está carregada de valores. Essa parece ser uma posição paradoxal visto que precisamente o que não pode ser controlado na visão substantivista é que os valores estão incorporados na tecnologia. De acordo com o substantivismo os valores contidos na tecnologia são exclusivos da tecnologia. Eles incluem a eficiência e o poder, metas que pertencem a qualquer e a todo sistema técnico. Na medida em que nós usamos a tecnologia, estamos comprometidos com o mundo numa movimento de maximização e controle. Esta aproximação ao mundo determina um estilo tecnológico de vida. Obviamente o controle humano teria pouco significado se cada estilo de vida se fundamentasse numa tecnologia executassem os mesmos valores. O elemento de controle humano seria como escolher marcas de sabão no supermercado, trivial e ilusório. Então, como a teoria crítica concebe o valor-carregado da tecnologia a ponto que o controle humano interesse?

De acordo com a teoria crítica, os valores incorporados na tecnologia são socialmente específicos e não são representados adequadamente por tais abstrações como a eficiência ou o controle. A tecnologia não molda só um modo de vida, mas muitos possíveis estilos diferentes de vida, cada um dos quais reflete escolhas diferentes de objetivos e extensões diferentes da mediação tecnológica. Eu uso a palavra “moldar” aqui propositadamente. Todos os quadros no museu têm molduras, mas não é por essa razão que estão no museu. As molduras são limites e contêm o que está por dentro. Semelhantemente, a eficiência “molda” todas as possibilidades da tecnologia, mas não determina os valores percebidos dentro daquela moldura.

Isto significa que a tecnologia é neutra, como acredita o instrumentalismo? Não realmente: as sociedades modernas devem todas objetivar à eficiência nos domínios onde aplicam a tecnologia, mas afirmar que eles não podem efetivar nenhum outro valor significativo além de eficiência é negligenciar as diferenças óbvias entre eles. O que é pior, negligencia a diferença entre o estado miserável atual e a condição melhor que nós podemos imaginar e pela qual podemos lutar. É preciso assumir uma altura muito grande para, abaixando o olhar ao gênero humano, deixar de ver a diferença entre armas eficientes e remédios eficientes, propaganda eficiente e eficiente educação, exploração eficiente e eficiente pesquisa! Essa diferença é social e eticamente significativa e assim não pode ser ignorada como fazem pensadores como Heidegger.

Não obstante, a crítica substantivista ao instrumentalismo nos ajuda a entender que as tecnologias não são instrumentos neutros. Meios e fins estão conectados. Assim, ainda mesmo se algum tipo de controle humano de tecnologia for possível, não será nenhum controle instrumental. Em teoria crítica a tecnologia não é vista como ferramentas, mas como estruturas para estilos de vida. As escolhas estão abertas para nós e situadas num nível mais alto do que o instrumental. Nós não podemos concordar com o instrumentalista quando afirma que as “Armas não matam as pessoas, senão, as pessoas matam as pessoas.” Abastecer pessoas com armas cria um mundo social bastante diferente do mundo no qual as pessoas não têm armas. Nós podemos escolher em qual mundo desejamos viver, por meio de qual legislação, tornando a posse de armas legal ou ilegal. Mas o instrumentalista afirma que esse não é o tipo de escolha que faríamos quando controlássemos a tecnologia. Isso é o que você poderia pensar como uma meta-escolha, uma escolha a um nível mais alto que determina quais valores devem ser incorporados na estrutura técnica de nossas vidas. A teoria crítica da tecnologia abre a possibilidade de pensar em tais escolhas e de submete-las a controles mais democráticos. Nós não temos que esperar por um deus para nos salvar como Heidegger exclamou, mas podemos ter esperança para nos salvar através da intervenção democrática na tecnologia.

Indubitavelmente, vocês gostariam de saber mais sobre essas intervenções democráticas. Claramente, não teria muito sentido defender uma eleição entre um dispositivo ou um design para as tecnologias. O público não está suficientemente preocupado, envolvido e informado para escolher os políticos bons neste momento, nem muito menos para tecnologias boas. Assim, em que sentido a democracia pode ser estendida à tecnologia e sob que condições atuais? Pode-se admitir que isso é uma esperança problemática. Mas não um absurdo. As pessoas afetadas pela mudança tecnológica às vezes protestam ou inovam de maneira que permite maior participação e controle democrático no futuro. Onde era possível silenciar toda oposição a projetos técnicos apelando para o progresso, hoje as comunidades se mobilizam para fazer seus desejos conhecidos, por exemplo, em oposição a usinas de energia nuclear em sua vizinhança. De um modo bastante diferente o computador tem nos envolvido na tecnologia tão intimamente que nossas atividades começaram a moldar seu desenvolvimento. Considere o e-mail na Internet que foi introduzido por usuários qualificados e que não constava em absoluto nos planos originais dos designer. No entanto, hoje e-mail é a função mais usada da Internet e uma das contribuições mais importantes do computador a nossas vidas. Eu poderia lhe mostrar exemplos semelhantes da medicina, dos assuntos urbanos, e assim por diante. Cada um parece uma pequena questão, mas talvez juntos sejam significativos.

A teoria crítica da tecnologia descobre nos exemplos como esses uma tendência de maior participação nas decisões sobre o design e o desenvolvimento. A esfera pública parece estar se abrindo lentamente para abranger os assuntos técnicos que eram vistos antigamente como esfera exclusiva dos peritos. Esta tendência pode continuar ao ponto de a cidadania envolver o exercício de controle humano sobre a estrutura técnica de nossas vidas? Nós temos que ter esperança pois outras alternativas parecem levar com certeza à destruição. Claro que os problemas não só são tecnológicos. A democracia está em ma forma hoje em todas as frentes, mas ninguém propôs uma alternativa melhor. Se as pessoas podem conceber e perseguir os seus interesses intrínsecos em paz e realização por mediação do processo político, assumirão a questão da tecnologia inevitavelmente junto com muitas outras perguntas que hoje se mantêm em expectativa. Só nos resta esperar que isso aconteça mais cedo do que mais tarde.

Andrew Feenberg