Nesse momento, é importante trazer à memória que a consciência, tal como a conhecemos, simplesmente tem pressuposições biológicas necessárias – o que eu não gostaria de modo algum de colocar em questão aqui. Uma engrenagem consideravelmente rudimentar que não consista dos materiais orgânicos relevantes, tal como precisaria ser pressuposto para a consciência fenomênica (faltam, em particular, neurônios e outros tipos de células), não poderia, por razões biológicas, servir de base para a consciência fenomênica. Nossa consciência fenomênica surgiu, de fato, no curso da evolução, o que não significa, e é importante para mim enfatizar isso, que o espírito humano é, como um todo, um fenômeno evolutivo. “Espírito” e “consciência” não são o mesmo e, por isso, a neurobiologia não encobre completamente a pesquisa sobre o espírito, uma vez que ela se concentra em apenas algumas das condições necessárias para a existência da consciência.
Quando falamos de cores, sabores ou outros qualia, falamos sobre algo que é preciso vivenciar para realmente conhecer. Não basta ser capaz de dar relatos corretos a esse respeito. Simplesmente faltaria a esses relatos a finura fenomênica relevante, independentemente de quão diferenciado fosse o vocabulário com o qual o robô analisa o sabor do vinho tinto. Uma máquina de sommelier não é um sommelier, mesmo que uma máquina de sommelier seja, às vezes, capaz de um melhor serviço do que um sommelier[67].
O ponto é que seres humanos não seguem apenas regras bastante universais que podemos traduzir em algoritmos. Um computador consegue, por meio de algoritmos, processar informações muito melhor do que nós mesmos. O que nos destaca é, muito antes, que não lidamos com as coisas apenas com o Sr. Spock do Star Treck, logicamente e sem emoção. Temos sentimentos em parte irracionais, aos quais pertencem não apenas os medos muito criticados, mas também a nossa capacidade de nos apaixonarmos. O ser humano não é nem apenas um animal rationale, nem simplesmente um homo irrationalis, mas sim uma criatura que é capaz de produzir autoimagens passíveis de ilusão e, juntamente com outros, celebrá-las, cultivá-las e transformá-las na medida em que elas se mostrem prejudiciais. Temos, por isso, também o direito ao absurdo cultivado, à ironia e a perseguir ilusões, desde que isso não prejudique a ninguém que queira, por sua vez, perseguir as suas próprias ilusões.
Um exemplo simples disso é nosso intercurso inteiramente cotidiano com coisas compráveis. Nós compramos de tudo, e toda vez temos a impressão de encontrar exatamente o que tínhamos procurado e apaziguar a nossa necessidade. Porém, assim que consumimos uma coisa ou a possuímos, já desejamos alguma outra coisa. Justamente esse desejo incessante por coisas foi colocado à prova criticamente por Buda, Karl Marx e pela psicanálise. É preciso enxergar também o desejo como fonte de ilusões. Mas não podemos descartar essas ilusões, uma vez que apenas por meio delas viemos a ser alguém. Uma consciência puramente intencional, desinteressada e observante simplesmente não seria como nós somos. Não por acaso, rodeamo-nos há milhares de anos com coisas bonitas nas quais espelhamos a nossa consciência.
Podemos, então, insistir que a expressão “consciência” se refere a uma combinação de elementos intencionais e fenomênicos, e a isso também pertence o fato de que algumas pressuposições necessárias para a consciência podem ser conhecidas pelo recurso à Teoria da Evolução. Caso se pensasse que a pura intencionalidade – ou seja, a circunstância de que algum sistema fornece relatos verdadeiros regularmente – poderia vigorar também independentemente da consciência fenomênica, nesse caso, seria como se se acreditasse que moléculas de água poderiam consistir apenas em hidrogênio e não da combinação correta de hidrogênio e oxigênio. Moléculas de água são, justamente moléculas de H2O. H [apenas] não é, nem de perto, água.