Bachelard (1949) – filosofia da ciência

Citações de Bachelard em “A Epistemologia Gaston Bachelard”

Se traçássemos um quadro geral da filosofia contemporânea, não deixaríamos de ficar impressionados com o pequeno lugar que nela ocupa a filosofia das ciências. De uma maneira mais geral ainda, as filosofias do conhecimento parecem actualmente desfavorecidas. O esforço do saber parece maculado pelo utilitarismo; os conceitos científicos, todavia tão bem harmonizados, são considerados apenas com o valor de utensílios. O homem de ciências, de pensamento tão obstinado e tão ardente, de pensamento tão vivo, é apresentado como um homem abstracto. Cada vez mais, todos os valores do homem estudioso, do homem engenhoso, são desacreditados. A ciência está reduzida a uma pequena aventura, uma aventura nos países quiméricos da teoria, nos labirintos tenebrosos de experiências factícias. Por um paradoxo inacreditável, a darmos ouvidos aos críticos da atividade científica, o estudo da natureza desviaria os sábios dos valores naturais, a organização racional das ideias prejudicaria a aquisição de novas ideias.

Se um filósofo fala do conhecimento, pretende que ele seja directo, imediato, intuitivo. Acaba-se por fazer da ingenuidade uma virtude, um método. Damos forma ao jogo de palavras de um grande poeta que tira a letra n à palavra ‘connaissance’ para sugerir que o verdadeiro conhecimento é um co-nascimento. E professamos que o primeiro acordar é já plena luz, que o espírito possui uma lucidez nata.

Se um filósofo fala da experiência, as coisas caminham bem depressa; tratar se da sua própria experiência, do desenvolvimento tranquilo de um temperamento. Acaba-se por descrever uma visão pessoal do mundo como se ela encontrasse ingenuamente o sentido de todo o universo. E a filosofia contemporânea é assim uma embriaguez de personalidade, uma embriaguez de originalidade. E esta originalidade pretendesse radical, enraizada no próprio ser; assinala uma existência concreta; funda um existencialismo imediato. Assim cada um se dirige imediatamente ao ser do homem. É inútil ir procurar mais longe um objecto de meditação, um obiecto de estudo, um objecto de conhecimento, um objecto de experiência. A consciência é um laboratório individual, um laboratório inato. Assim, os existencialismos abundam. Cada um tem o seu; cada qual encontra a glória na sua singularidade.

Pois bem! Na atividade científica não se é original por tão baixo preço; o pensamento científico não encontra tão facilmente a permanência e a coesão de uma existência. Mas, em contrapartida, o pensamento científico define-se como uma evidente promoção da existência. E é para esta promoção da existência que eu queria chamar a vossa atenção.

Em suma, em lugar de uma existência na raiz do ser, no repouso de uma natural perseverança no ser, a ciência propõe-nos um existencialismo pela ação enérgica do ser pensante. O pensamento é uma força, não é uma substância. Quanto maior é a força, tanto mais elevada é a promoção db ser. É, portanto, nos dois momentos em que o homem alarga a sua experiência e em que coordena o seu saber que se institui verdadeiramente na sua dinâmica de ser pensante. Quando um existencialista célebre nos confessa tranquilamente: «O movimento é uma doença do ser», respondo-lhe: o ser é uma obstrução do movimento, uma paragem, uma vagatura, um vazio. E veio a necessidade de uma inversão radical da fenomenologia do ser humano, de modo a descrever o ser humano como promoção de ser, na sua tensão essencial, substituindo sistematicamente toda a ontologia por uma dinamologia. Por outras palavras, parece-me que a existência da ciência se define como um progresso do saber, que o nada simboliza juntamente com a ignorância. Em suma. a ciência é uma das testemunhas mais irrefutáveis da existência essencialmente progressiva do ser pensante. O ser pensante pensa um pensamento cognoscente. Não pensa uma existência.

O que será então designada, num estilo moderno, a filosofia das ciências? Será uma fenomenologia do homem estudioso, do homem debruçado sobre o seu estudo e não somente um vago saldo de ideias gerais e de resultados adquiridos. Terá de nos fazer assistir ao drama quotidiano do estudo quotidiano, de descrever a rivalidade e a cooperação entre o esforço teórico e a investigação experimental, de nos colocar no centro do perpétuo conflito de métodos que é o carácter manifesto, o carácter tónico da cultura científica contemporânea. (Congrès international de Philosophie des Sciences, 1949.)